Texto originalmente publicado no Medium, em novembro de 2018 na ocasião do primeiro fechamento do bar.
Republicado agora, já que a casa reabriu e fechou de novo.
Encerrou as atividades em outubro de 2018 novembro de 2019 o The Clock Rock Bar.
Das 465 amizades atualmente ativas no meu Facebook, 33% podem ser agrupados na categoria “The Clock”. São 152 vidas que se interligam a mim por conta de um bar em Perdizes. Algumas dessas pessoas são estimadíssimos amigos, que eu amo de todo meu coração e confio cegamente. Alguns são pessoas que eu considero meus melhores amigos e que mesmo com a distância das idas e vindas de minha vida, sempre me senti intimamente próximo. A imensa maioria desses são amigos que eu não tenho dúvida que manterei para sempre.
O príncipe andava de um lado para o outro, inquieto. O fogo crepitava na ampla sala de música de Buckingham, apesar da primavera já presentear a capital do Império Britânico com temperaturas mais quentes e agradáveis. Os três homens na sala estavam em um silêncio tão pesado que era possível ouvir os bêbados de Leicester cantando do lado de fora do palácio. O piso madeirado rangia em determinado ponto, mas era um barulho menos irritante do que as botas reais do príncipe martelando continuamente ao andar pelo longo cômodo. No centro da sala, um tapete persa vermelho e azul abafava seus passos. Vermelho e azul também era a vestimenta do príncipe, de veludo indiano, lhe caindo perfeitamente sobre o peito ferido das batalhas da década passada.
– Acalme-se, William – disse Charles, sentado calmamente numa das poltronas do outro lado da sala, ao lado do piano, bebericando uma pequena taça de brandy.
– Eu estou calmo, pai! – respondeu William, claramente irritado.
O duque de York estava sentado ao lado de Charles. Ele se levantou e serviu duas taças de brandy, deixando uma na mesa e levando outra até o nervoso príncipe:
– Tome um brandy, vai lhe fazer bem – ofereceu Andrew.
– Não quero beber nada! – disse o príncipe, atirando a taça do outro lado da sala.
Reza o dito popular que, quando você tiver algo muito importante para ser feito, deve pedir à pessoa mais ocupada: ela encontrará a forma mais fácil e rápida de fazê-lo. A sabedoria contida no provérbio é inexorável; a dificuldade moderna, porém, é encontrar no meio de seu rol de contatos o que for o mais ocupado.
“Estou sem tempo para nada” é a desculpa do século, válida mais para si mesmo do que para outrem. Afinal, perde-se tanto tempo trabalhando, transitando, comendo e assistindo a novela das oito que ninguém mais têm tempo para ir à academia, tocar oboé ou aprender francês.
“E eu fui até a cozinha chorando e Neil disse para mim: ‘O que diabos você tem?’ e eu disse: ‘Bem, eu acabei de matar a pessoa.’”
A confissão acima caberia muito bem em qualquer julgamento de um assassino frio e calculista. Seria muito apropriada em algum drama que escancara as manchetes dos jornais populares. Alguém mais incauto argumentaria sobre uma legítima defesa, mas a autora da frase agiu por vontade própria contra alguém que não a ameaçava de forma alguma. Ela não se importa, já que poderá ter ao seu lado os melhores advogados, uma vez que estamos falando de uma das mulheres mais ricas do mundo.
A assassina em questão é J.K. Rowling e o defunto referido é Albus Dumbledore, um inocente professor que nunca foi capaz de fazer mal a uma mosca. Nessa entrevista, JK ainda confessou que o crime foi meticulosamente premeditado e que aquilo a chateou profundamente, mas em momento nenhum ela se mostra arrependida.
Vivian tem 34 anos. Está solteira ainda e sabe muito bem o porquê: é essa geração de homens que está completamente errada. A culpa não pode ser dela, que é uma mulher independente, tem um emprego de garbo na redação de um jornal daqueles que é distribuído de graça nos semáforos (e o povo resolve as palavras cruzadas e forra o chão do carro com seus artigos). Ela é uma mulher perfeita, que vai em passeata pelo futuro do país e se indigna justamente com todos os problemas sociais. A única coisa que Vivian não sabe é cuidar da casa. Ela pede pizza duas vezes por semana e tem uma empregada diarista que cuida dos afazeres dela. E é justamente por isso que os homens não a querem: Os homens procuram alguém que continue sendo a mãe deles, que lhes costurem as cuecas e façam massagem nas costas.
A culpa é dessa geração de homens, despreparada para um universo feminino tão evoluído.
Um forte apito é soado e a cortina se abre. No centro do palco, um juiz de futebol, camisa amarela e calção preto, cabelo cheio de gel penteado para trás. As pernas flexionadas, uma mão segurando o apito na boca e a outra esticada, apontando com quatro dedos o local da falta.
Entra um outro homem, um jogador vestindo a camisa 7 do time vermelho. Se aproxima do juiz, a mão direita levantada empunhando autoritariamente um cartão imaginário.
Camisa 7 vermelho: Pô! Falta pra cartão, hein, juiz! Pra cartão!
Juiz:É… Talvez tenha sido…
O juiz faz um gesto chamando outro jogador. Entra no palco um outro jogador, o camisa 3 azul, as mãos na frente do corpo simulando um formato redondo.
Camisa 3 azul: Não, professor! Foi na bola, pelo amor de Deus! Foi na bola! Nem falta foi!
Juiz: Não me venha com essa, olha o cara caído ali!
3 azul: Ele se jogou! Eu não fiz nada, professor.
Juiz (virando-se para o outro jogador):Olha aí, ele disse que não foi nada. Vamos dar sequência no jogo então. – (disse enquanto erguia os dois braços simbolizando que mandaria o jogo seguir)
7 vermelho:Sequência? Não, como assim! Foi falta, lógico que foi! Olha lá! Deu fratura exposta! Olha o osso do cara saindo pra fora! – (apontando furiosamente para o canto do palco onde a platéia imagina que esteja o jogador caído)
Juiz (olhando na direção do homem que imaginariamente atua se contorcendo de dor no chão):É… parece ter sido algo sério, foi falta sim! – (disse enquanto apontava novamente a sinalização de falta)
Outros jogadores de ambos os times vão se aproximando, formando uma rodinha em torno do juiz.
3 azul: Peraí, professor! Não, não foi falta não, vamos conversar! Eu fui na bola e o cara se jogou!
7 vermelho: Se jogou nada, porra! Como ele está ali com a fratura exposta então? Olha lá o osso saltando da perna, olha quanto sangue!
Juiz (dirigindo-se para o 3 azul e apontando com o polegar para o 7 vermelho): Bons argumentos! Olha aí!
3 azul: Tá bom, talvez eu tenha acertado nele sem querer! Mas foi legítima defesa!
7 vermelho:Como pode ter sido sem querer e legítima defesa ao mesmo tempo?
3 azul: Ia ser sem querer, mas olha lá, professor: o cara apontou uma arma pra mim, aí eu acertei ele em legítima defesa!
Juiz (dirigindo-se para o 7 vermelho e apontando com o polegar para o 3 azul): Bons argumentos! Olha aí!
7 vermelho: O cara vem me falar de apontar arma, mas quem entrou em campo com uma peixeira na cintura foi ele!
3 azul:Também foi legítima defesa! As declarações do cara na imprensa era que ia destruir a gente!
7 vermelho:Ele falou isso só como réplica por você ter chamado a mãe do nosso treinador de puta.
3 azul:Se a mãe do seu treinador não tivesse passado sífilis para o meu pai, eu dificilmente chamaria ela de…
Você se lembra aonde estava quando o Senna sofreu seu acidente final? E quando os aviões atingiram as Torres Gêmeas? E quando o Dumbledore morreu?
As tragédias marcam as nossas vidas de uma forma incrível: é muito fácil lembrar-nos completamente do que fizemos durante todo o dia 11 de setembro de 2011. Quem encontramos, aonde estávamos, às vezes até o que almoçamos naquele dia, enquanto fitávamos abobalhados a televisão, reprisando repetidamente aquela bola de fogo subindo pelo céu de New York.
O que me intriga são as tragédias que acometem a todos nós, mas cada um a seu tempo. São as tragédias literárias. Você se lembra o que estava fazendo quando Dumbledore morreu?
O fascinante de uma pergunta dessas é que ele morreu em dias – e até de formas – diferentes para cada um de nós. Para muitos pode ter sido em um domingo chuvoso, para outros foi num ensolarado dia de praia e para mim foi no conforto de minha cama, às 3h da manhã de um dia útil, após uma maratona de “só mais um capítulo e aí eu vou dormir” que consumiu praticamente o livro todo.
No mundo literário, não há muitos personagens que nos prendem a ponto de gerarmos lembranças tão marcantes de suas tragédias. Às vezes, porém, o drama é tão forte que foge da ficção e te deprime na sua vida cotidiana. Um dos momentos mais tristes da minha vida foi um sábado, a Globo transmitia São Paulo x Guarani enquanto eu lia “As Crônicas de Artur”, de Bernard Cornwell. O São Paulo sofreu um gol de virada no exato segundo que o meu personagem favorito do livro morreu em um duelo, fatos que em conjunto me deixaram deprimidos pelo resto do dia – quase pelo resto da vida.
Às vezes, o impacto emocional é tão grande que a melhor coisa a se fazer é simplesmente não ler o livro. Se você ler apenas os dois primeiros capítulos de Game of Thrones, pode conviver para sempre com a idéia daquele reino maravilhoso onde o rei Robert Baratheon governa alegremente aquele punhado de famílias pacíficas. Pronto. É melhor pra todos.
Em um dia de maio, quando eu já estava acostumado com o espírito assassino de George R. R. Martin, voltava de ônibus de uma viagem pelo norte de Portugal, me entretendo com o segundo livro, quando logo percebi que mais alguma tragédia terrível ia atingir a família Stark. A coisa mais inteligente que eu fiz foi fechar o livro imediatamente e esperar um tempo. Enquanto eu não lesse, meus queridos personagens continuariam vivos, então me contive o máximo possível para dar a eles algumas horas a mais de vida. Sou um rapaz misericordioso também.
Ainda em Game of Thrones, Ned Stark foi decapitado enquanto eu estava deitado em minha cama em Lisboa (não quero saber de reclamações de spoilers! ele era interpretado pelo Sean Bean, lógico que ia morrer!); e, em Londres, tive um almoço particularmente longo porque não conseguia parar de ler e de me aterrorizar com os acontecimentos do Red Wedding, fato que me colocou em depressão pelo resto do dia.
Por sorte, o caminho contrário nunca acontece e a depressão de nossas vidas não atinge nossos personagens. O que é particularmente útil quando queremos escapar da realidade chata. Quando tudo mais falhar, é só abrir aquele gibi com a certeza que o Cebolinha e o Cascão estão brincando alheios aos nossos problemas, a Mônica se diverte com o bullying dela – ao contrário de nós que sofremos com os nossos – e a Magali ignora o futuro provavelmente anoréxico que vai acometê-la na adolescência.
Os livros seguem a vida deles independentes das nossas. A recíproca nem sempre é verdadeira.
Aquela senhora devia já ter entrado na casa dos 40 anos. Usava sempre uma saia e os cabelos negros ligeiramente grisalhos sempre se encontravam em um coque atrás da cabeça. Todas as noites de quartas e sextas-feiras ia na livraria, na seção de Literatura Nacional e pegava um livro de contos e crônicas. Lia um ou outro de pé e, se achasse algum que lhe agradasse particularmente, sentava-se numa das confortáveis poltronas da livraria e lia mais alguns contos. Às vezes, gostava tanto de um livro que se dedicava a ele por algumas semanas, sem nunca comprar nenhum, porém.
Um dia, um vendedor a abordou:
– Boa noite, senhora. Já viu o novo livro do Luis Fernando Verissimo?
– Oi, desculpa?
– Luis Fernando Verissimo. Gosta dele, não? – e estendeu um livro na direção dela.
– Eu? – a mulher olhou o vendedor de olhos meio arregalados. Guardou as crônicas de Mário Prata de volta na estante e pegou o livro em mãos, com um olhar meio fascinado. – Gosto sim… Obrigado!
Nas próximas duas semanas, ela lia somente aquele livro em suas visitas à livraria. Na visita em que terminou de ler o livro, cruzou com o mesmo vendedor após guardá-lo de volta na prateleira. Não se conteve em dizer:
– Ótimo livro! Obrigado!
Ficaram amigos e na outra semana, o vendedor recomendou um do Millôr Fernandes também.
O autor preparou seu exército de caracteres. Letras, espaços e vírgulas, alinhados, enfileirados, como se formassem uma gigantesca parede de escudos. O campo de batalha estava formado, escrito e articulado, com parágrafos planejados e uma estratégia de combate de dar inveja a Sun Tzu.
O editor estava do outro lado, sozinho contra todos. Apesar do discurso de liberdade editorial, todos sabiam que ia ser uma luta difícil. A licença poética estava em jogo. Mesmo com a diferença numérica, a batalha seria dura e o editor não queria dar chances para o texto.
Começou matando um aposto. A canetada era esperada. As letras se uniram: o quilômetro se abreviou para salvar alguns caracteres; um adjetivo se excluiu em um auto-sacrifício por um colega menor e semelhante. O espaçamento se espremeu para parecer mais unido, mas mesmo assim o editor invadiu o texto, ignorando as sentenças bem articuladas. Ele prosseguiu com seu ataque: Quebrou uma linha de raciocínio, separou dois parágrafos e usou o veículo como argumento pra remover uma frase que não seguia seu pensamento.
O autor interferiu: Reclamou que o ontem não poderia substituir o ante-ontem só para salvar caracteres. O editor ameaçou trocar o ontem por hoje pra reduzir ainda mais. O autor cedeu. O editor se animou: Excluiu um paragráfo inteiro, cortou uma frase longa em três, moveu a introdução para o lugar da conclusão e a conclusão foi deletada.
O autor chorou ao ver o massacre. As palavras já começaram a ficar perdidas no meio da bagunça provocada pelo editor. Um advérbio bateu numa vírgula e ficou sem saber para onde ir. O próprio autor misericordiosamente retirou ele de cena. Desesperadamente, começou a jogar novos caracteres em campo, com esperança de salvar a idéia. Não era religioso, mas pensou em novas orações. Um novo sujeito apareceu para resgatar um predicado. O editor continuava excluindo. Separou idéias, removeu aspas, discordou de um depoimento.
A batalha estava perdida. O argumento desapareceu. A esperança era ao menos salvar a conclusão, para terminar com algum sentido. O editor foi impiedoso: Não restavam caracteres ao autor. “Eu preciso de um final decente! Tendes piedade!”, clamou o autor para o sentimentalismo. O editor recusou: “São as normas do veículo. Não há espaço.”. Os caracteres, cabisbaixos e serifados em Times New Roman não identificavam mais seus semelhantes. Até o título foi trocado. Numa última investida se apertaram para tentar encaixar um final. O editor não cedeu e o texto fic
“Eu fechei a janela? Devo ter fechado. Eu sempre fecho. Não vou lá agora, sair do carro, fechar o carro, entrar em casa, só pra ver uma porcaria de janela. É muito trabalho. O foda é que agora eu vou ficar a tarde inteira com a dúvida se eu fechei a janela ou não. Bosta!
“Se eu quiser confirmar isso, tenho que virar aqui agora. Vou virar… Não. Foda-se. Agora vou ficando cada vez mais longe e não vou mesmo voltar só pra ver isso. Não vai chover hoje também. O tempo tá bonito. Se bem que ontem também estava e choveu. Ah, mas mesmo se chover não vai ter problema: o que eu tenho perto da janela que não pode molhar? Talvez a televisão. Não, mas tem que chover com uma ventania muito forte para a água atingir a televisão. Não tem perigo. Se chover, só vai inundar o chão. E minha mesinha. Mas também não tem nada em cima da mesinha.