Defina Coxinha

Nossa relação com comida é um assunto complexo.

Principalmente na sociedade moderna aonde desvirtuar o alimento tradicional virou quase um hobby. Somos bombardeados constantemente com novidades incríveis e completamente transgressoras, como o dogão de carne moída, a pizza de sushi ou o temível brigadeiro de capim santo.

O sushi-burrito é uma apropriação-cultural claramanete não-nipônica-não-mexicana que visa ofender ao máximo de etnias possível

Veja bem, não sou um extremista da culinária tradicional. Se você é carioca e quiser estragar a sua pizza enchendo ela com um molho doce completamente incondizente com o alimento (que já vem com seu próprio e adequado molho de tomate), seja livre para fazê-lo. Quem vai comer é você, mermão. Pode comer vidro que eu não me importo.

Mas acredito que a alma dos alimentos deve ser corretamente preservada, senão vira molecagem. Quando me oferecerem um brigadeiro, por exemplo, eu espero receber um doce feito à base de leite condensado e chocolate em pó, de forma esférica e coberto com confeitos de chocolate. Se envolve erva cidreira na receita e cobertura de lascas de amêndoa, o adequado seria chamar de outra coisa, tira esse título de brigadeiro do seu nome que ele não merece.

Roteiro da baixa gastronomia de São Paulo #3

Um guia com os piores lugares para se comer mal sem gastar muito em São Paulo

Quickies
Ladeira Porto Geral, 14
Salgado
Custo total: R$2

Em um espaço de menos de quatro metros quadrados, no topo da ladeira Porto Geral, no centro, fica a menor lanchonete da cidade. Se é que um punhado de máquinas automáticas de salgados podem ser considerados uma lanchonete. O conceito foi trazido a São Paulo pelo empresário Marcus Vinicius de Lima, inspirado em uma rede similar holandesa, que teria feito um investimento de R$8 milhões na idéia. Em geral apenas um funcionário trabalha no interior das máquinas, repondo os salgados.

Mais direto impossível: as moedas são colocadas na máquina – que não dá troco, mas se você quiser, pode trocar seu dinheiro em outra máquina – e você abre a janelinha que tiver o salgado que parecer mais apetitoso ou menos repugnante, depende da sua sorte no momento. As descrições dos salgados se encontram no topo das colunas de janelas, e uma coluna pode ter mais de um tipo diferente de alimento, assim, pode ser um exercício de observação e astúcia escolher o salgado desejado.

Fui direto nas janelas de R$2,00, onde podia escolher entre o Kaasoufle, descrito como um pastel empanado de queijo cremoso ou o Bami, um suposto “Empalhado de talharini, frango e legumes”. Na minha humilde concepção, talharini era um tipo de macarrão, mas eu estava em uma época confusa da minha vida e provavelmente pediria ajuda para os universitários do Show do Milhão se tivesse que responder uma pergunta sobre pratos tipicamente italianos. Qual o problema do Quickies com coxinhas, esfihas de carne ou risoles de queijo? Até os croquetes de carne tinham sabores inusitados como goulash.

Depositei duas moedas de um real na máquina – o equivalente a duas refeições completas no Bom Prato – e, ainda meio confuso com o funcionamento de uma tecnologia culinária tão avançada, fui abrir a janelinha do salgado que parecia maior. A maçaneta estava quente e resistiu ao meu puxão, por isso hesitei. “É só puxar, senhor.”, disse um funcionário que acompanhava minha epopéia a uma certa distância, me deixando ligeiramente acanhado pelo repentino contato humano que não devia fazer parte da experiência.

Peguei o salgado, fechei a janela, cumprimentei o homem com um tímido “obrigado” e segui andando em direção ao Pátio do Colégio, enquanto mordia meu empanado. Eu estava certo: Talharini é um tipo de macarrão. É uma experiência inusitada: é como se eu tivesse pedido um prato para viagem, “mas ao invés de colocar numa marmita, você pode embrulhar ele em um invólucro de empanado?”

Meu salgado de macarrão
Meu salgado de macarrão

Comi o lanche como ele deve ser saboreado: com pressa, olhando para baixo, sem maiores interações com seres humanos, nem sequer olhar nos olhos de outras pessoas. O Quickies é claramente uma rede de fast food para pessoas que preferem comer um salgado requentado de gosto duvidoso do que ter que falar com desconhecidos, característica que surpreendentemente atinge uma boa gama de pessoas que eu conheço e que com certeza tem um público alvo vasto numa cidade como São Paulo. Em defesa da iguaria, o empanado ainda estava crocante e o recheio quente e levemente apimentado, apesar da estranheza inicial do macarrão.

Mas, se hoje ninguém mais estranha um pastel sabor pizza, pode ser uma boa tentativa para os inovadores pasteleiros de feira a criação de sabores como “spaghetti à la puttanesca” ou “penne all’arrabbiata”. Aguardemos.

***

Café Armênia
Rua Pedro Vicente, 177
Hamburguer com suco
Custo total: R$5

A poucos metros da saída norte do metrô Armênia em frente à entrada de um estacionamento, um trailer desponta com seu cardápio exposto em sua fuselagem (onde por falta de manutenção, todos os produtos custam 8,88). Duas cadeiras de plástico ficam em frente a duas grandes lixeiras, o que mostra que a posição da área de alimentação não foi muito bem planejada – ou foi planejada bem demais. Uma placa dizia “Proibida a entrada de homens sem camisa neste recinto”. Em qual recinto, se éramos servidos na rua?

Salgados e sanduíches ficam expostos em vitrines de vidro. Pães de queijo do tamanho de bolinhas de gude aglutinavam-se à direita (sete por R$1,00). Hamburgueres completos já preparados com queijo e salada se empilham não tão convidativamente atrás de um vidro. Optei pelo hambuguer, que parecia a especialidade da casa (R$3,00).

“Você vai querer prensado?”, perguntou a atendente, jovem e simpática. “Pode ser!”, respondi, achando que aquele negócio comprimido seria mais fácil de ser ingerido. Ela então primeiro colocou o lanche no microondas por 30 segundos – somente o suficiente para dar ao alface aquela aparência escura e consistência emborrachada. Depois, remanejou bandejas e equipamentos no apertado trailer para livrar espaço para a prensa, aonde colocou o lanche. “Tá bom assim?”, perguntou depois de um tempo de prensa utilizada. “Pode ser!”, repeti minha resposta, deixando claro que, se estava comendo ali, não tinha mesmo muitos critérios alimentícios.

Para acompanhar, pedi um suco Frutix de laranja com acerola (R$2,00). Ao meu lado, um homem que podia ter entre 40 e 80 anos que comia uma coxinha (R$2,00) e não tinha nenhum dos dentes superiores entre os caninos pediu um pouco do meu suco. Pedi um copo à atendente e servi aproximadamente 1/3 de meu vasilhame ao homem. Ele agradeceu e começou a explicar, em um dialeto de português quase incompreensível, que acabou de chegar do Ceará, não tinha dinheiro e estava ali esperando o cunhado dele buscá-lo, ou alguma coisa nesse estilo.

Peguei o pote de catchup (um pouco doce demais) e maionese (que tinha a consistência de um fluído não-newtoniano) e fui comer apoiado em uma alta mesa de madeira com o logo da cervejaria Ravache, apesar do lugar só vender Skol e Itaipava, enquanto apreciava o atendimento exemplar da moça que elogiava os avanços na educação do que parecia um cliente recorrente (“Muito bem! Pediu até por favor dessa vez!”, dizia ela).

O lanche não era nenhuma especialidade da hamburgueria nacional, mas também não era ruim como uma pizza vegana. Provavelmente eu esperava tão pouco dele que ele acabou me surpreendendo positivamente. O resto do meu péssimo suco avermelhado foi doado ao cearense que tive que abandonar e nunca saberei se ele foi realmente resgatado pelo cunhado.

Café Armênia
Lanchonete completa

+ MAIS +

Outros roteiros:

Roteiro da baixa gastronomia de São Paulo #2
Roteiro da baixa gastronomia de São Paulo #1

Para comer:

Quickies: Ladeira Porto Geral, 14
Café Armênia: Rua Pedro Vicente, 177
Estomazil: Em qualquer farmácia

Se você tem alguma sugestão de lugar ruim e barato, deixe aí nos comentários que ela será levada em conta.

Roteiro da baixa gastronomia de São Paulo #2

Um guia com os piores lugares para se comer mal sem gastar muito em São Paulo

Tudo isso por um real
Tudo isso por um real

Bom Prato
Rua 25 de março, 166
Refeição completa
Custo total: R$1

Saindo do metrô Sé e descendo a Rangel Pestana encontramos o primeiro indício que estávamos no caminho certo do Bom Prato: um mendigo pedindo um real para o almoço no local. Querendo me enturmar com a clientela local, estendi uma moeda ao rapaz: “Quero ir no Bom Prato também. Posso ir com você?”.

O mendigo prontamente retirou a moeda de meus dedos e disse que precisava ir buscar a patroa dele ali em cima, não sem antes nos indicar o caminho “Fica ali, ó… Esquerda e depois esquerda de novo, na esquina.” e partiu. Sendo dispensado por um mendigo; essa é minha vida.

Eram 11:50 da manhã quando chegamos no salão do Bom Prato. Ainda não havia filas. A casa abre às 11h e o almoço é servido até o término da cota de cada unidade (que varia entre 1200 a 2500 refeições). Desde 2011, as unidades também oferecem café da manhã a R$0,50.

O Governo do Estado subisidia R$3,00 do custo total da refeição, restando ao usuário pagar somente o valor de R$1,00 pelo prato bem servido. Paga-se o valor na entrada, onde recebe-se um cartãozinho que é entregue logo ao lado. Uma pia após a catraca permite que os clientes com um mínimo de asseio lavem as mãos e, posteriormente, seguem para a fila das refeições. Nunca fui preso, mas já comi no bandejão da USP e essa é a comparação mais próxima que eu consigo imaginar para o serviço. Meu prato de porcelana foi inicialmente agredido com uma concha de arroz e uma de feijão simultânea. Seguindo a fila, conchas consideravelmente menores de um bem-temperado frango e berinjela são despejadas por cima. Não há espaço para recusas. Antes que você consiga pensar, a comida é jogada na sua frente. Um pouco de alface picado, uma banana, um copo de plástico de um suco vermelho e um pãozinho meio deformado completam a bandeja.

Arrumamos um lugar no salão onde a movimentação de uma imensa variedade de pessoas de todos os tipos e classes revezavam-se sentando, comendo e saindo. A comida é incrivelmente boa, servida quentinha, melhor que a maioria dos PFs de padarias. A combinação nutritiva é uma das coisas mais saudáveis que eu comi por conta própria no ano.

Roteiro da baixa gastronomia de São Paulo #1

Um guia com os piores lugares para se comer mal sem gastar muito em São Paulo

Evite tirar fotos muito próximas do local
Evite tirar fotos muito próximas do local

Churrasco Grego
Largo do Paissandu, 19 – centro
Um churrasco grego com suco
Custo total: R$1,50

Empoleirado na soleira da porta de uma lanchonete, atrás da Igreja dos Homens Pretos, no Largo do Paissandu, e com uma monumental vista para os suicídios de jovens na Galeria do Rock, encontramos este nobre e minúsculo apêndice de toldo azul com sua carne eternamente giratória. 

Lá é possível degustar o tradicional churrasco grego, sempre acompanhado com um serviço de entretenimento promovido pelos mendigos locais. O mendigo que nos atendeu alcunhava a si mesmo de “vagabundo do delegado” – sendo “vagabundo” um substantivo. Ele iniciou sua aproximação me jogando um beijo ao vento e cuspiu (algumas vezes literalmente) toda sua sabedoria sobre como as mulheres só causam problemas e eu devia me livrar da minha – o que já demonstra que talvez não seja uma boa idéia levar sua garota para um jantar romântico no local.

Não há opções vegetarianas. Nossa escolha foi o único lanche disponível, na versão com vinagrete – este que fica armazenado à temperatura ambiente, na mesma gaveta de onde o vendedor lhe devolverá o troco. O sanduíche foi meio decepcionante, parecendo muito menor do que devia, mas com uma relação custo-benefício que vale a pena. Os clientes têm à disposição, além dos agüados condimentos básicos (ketchup e mostarda), um balde com um molho de pimenta caseiro, a ser depositado no pão com uma colher de pau compartilhada por todo mundo. Apesar de bem temperado, é recomendável evitá-lo – e me refiro não só a não experimentar o molho, mas também a se manter a uma certa distância dele.

A cortesia da casa fica por conta refil de suco. Pelo menos o responsável não parece se importar com os clientes reabastecendo seus copos na refresqueira. Também não podemos dizer que seja um primor de suco: não passa de uma água com açúcar e corante, mas que provavelmente deve cair muito bem se acompanhada por vodka (leve a sua de casa).

Um adesivo colado no toldo indica a área de fumantes (a 15km dali, indo em qualquer direção). A ausência de guardanapos decentes também é um problema, além do público ligeiramente pessimamente apresentável. A única garota em um raio de dois quilômetros do local foi a que eu levei e que ainda pagou por minha refeição (o que também é uma indicação do porquê que meus relacionamentos nunca duram).

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Rei do Salgado
Um público variado a qualquer hora do dia

Rei dos Salgados 
Rua Dom José de Barros, 144 – centro
Um rissoles e uma coxinha
Custo total: R$1,00

Se o centro de São Paulo fosse um ser vivo, este nobre lugar estaria localizado no que seria o seu rim.

Nesta casinha de aproximadamente 15m², o que imediatamente nos chama a atenção são duas faixas anunciando salgados a R$0,50 e sua inusitada decoração com azulejos pintados de laranja, que por algum motivo me fez lembrar um Crocs.

Do lado oposto à porta localiza-se o espaço gourmet, que na verdade é apenas uma bancada de vidro onde dezenas de salgados espremem-se e amontoam-se ali de forma desordenada e aleatória como minhocas em um minhocário (a comparação pode parecer meio nojenta, mas as minhocas não se importam).

Pedi um rissoles (R$0,50) e uma coxinha (R$0,50). Ambos devem ter sido feitos naquela semana mesmo e reaquecidos todas as manhãs, aonde ficam no vidro lentamente resfriando-se, o que dá um sabor todo especial às iguarias. Nas laterais do estabelecimento, um balcãozinho de aproximadamente 20cm de largura permite que os clientes comam por ali mesmo, em pé. Numa das paredes, um espelho permite que eles vejam a si mesmos comendo e dessa forma repensem completamente a própria vida.

A consistência do ketchup era o que podíamos chamar de surpreendente. E o mesmo adjetivo pode ser dado à textura do salgado. O público é do mais variado: enquanto camelôs esbravejavam impropérios na rua, uma colombiana se confundia toda com a grande variedade oferecida. Uma criança esperneava por um pastel (R$1,00), que era da metade do tamanho do pastel de R$2,50 ali perto.

Corajosamente, engoli os dois salgados a seco, o que foi um problema porque a massa cria uma consistência autocolante. Provavelmente, cinco ou seis salgados são o suficiente para colar completamente sua boca e entupir suas vias respiratórias.

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Pastel a 2.50
Pastel a 2.50

Pastelaria Imperial
Avenida Prestes Maia, 72 – Anhangabaú
Um pastel e um caldo de cana
Custo total: R$4,00

Extremamente bem localizado, no coração do Vale Anhangabaú – saindo do metrô São Bento, no terceiro morador de rua à esquerda -, se localiza esta nobre casa: um amplo salão bem iluminado, repleto de pequenas mesas de madeira rodeadas por cadeiras de plástico. O chão é sujo como um deputado federal – talvez com um pouco menos de luz, a porquice poderia passar levemente mais despercebida. As paredes são decoradas com duas grandes imagens de temática nipônica, o que ajuda a reforçar aquele esteriótipo do japonês pasteleiro.

Uma chamativa faixa anuncia ao vale a grande especialidade da casa: Pastel de feira a R$2,50. O preço é o mesmo há pelo menos oito meses, o que deveria descaracterizar o anúncio de “promoção” que a faixa ainda carrega. Dentro, uma placa ameaçadora destaca o fato que é proibido consumir ali alimentos trazidos de fora. O banheiro para não-clientes custa R$1,00 – vinte e cinco centavos mais barato do que comprar um salgado e virar cliente.

Não perca tempo maravilhando-se com o carrossel de sabores que a casa oferece. Vá até o balcão e veja quais bandejas ainda restam. Talvez pela popularidade da casa ou por preguiça do pasteleiro, o cardápio nunca se encontra 100% completo.

Uma vez escolhida a iguaria a ser degustada, paga-se primeiro no caixa, demonstrando uma inteligentíssima falta de confiança no cliente. No fundo do estabelecimento, um espaço gourmet self-service apresenta uma ampla variedade de salgados ao preço de R$1,25 cada um.

Optei por um pastel de carne com queijo (R$2,50) e 300ml de caldo de cana (R$1,50). Aceita-se cartões de crédito.

O pastel, frito na hora (uma vantagem em relação às outras casas, acredite!) tem um sabor bem justo. O recheio tinha uma porção honesta de queijo, porém já vi refeições vegetarianas que tinham mais carne. Ele fica ainda melhor se você não colocar os condimentos da casa: o ketchup é doce e a mostarda azeda. Galões de ketchup e mostarda repousavam ameaçadores em cima do balcão (são da marca Lanchero, caso alguém se interesse).

O caldo de cana peca na falta de personalidade, mas ganha na personalização. É possível definir quantas pedras de gelo você quer e quanto de suco de limão deve ser adicionado ao seu drinque. O meu copo veio com um pequeno inseto alado flutuando no líquido verde, o que só evidencia a pureza da cana utilizada. Os canudos são todos embalados individualmente, num inexplicável arroubo de higiene.

Com um público eclético (é possível ver pedreiros, mendigos, engravatados e famílias), preços atrativos e uma qualidade próxima do mediano, é uma boa pedida para quem tem mais fome do que dinheiro.

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Outros roteiros:

Roteiro da baixa gastronomia de São Paulo #2
Roteiro da baixa gastronomia de São Paulo #3

Para comer:

Churrasco Grego: Largo do Paissandu, 19
Rei do Salgado: Rua Dom José de Barros, 144
Pastelaria Imperial: Avenida Prestes Maia, 72
Estomazil: Em qualquer farmácia

Na próxima edição:

Yakissoba, Bom Prato e mais.

Se você tem alguma sugestão de lugar ruim e barato, deixe aí nos comentários que ela será levada em conta.