Você se lembra aonde estava quando o Senna sofreu seu acidente final? E quando os aviões atingiram as Torres Gêmeas? E quando o Dumbledore morreu?
As tragédias marcam as nossas vidas de uma forma incrível: é muito fácil lembrar-nos completamente do que fizemos durante todo o dia 11 de setembro de 2011. Quem encontramos, aonde estávamos, às vezes até o que almoçamos naquele dia, enquanto fitávamos abobalhados a televisão, reprisando repetidamente aquela bola de fogo subindo pelo céu de New York.
O que me intriga são as tragédias que acometem a todos nós, mas cada um a seu tempo. São as tragédias literárias. Você se lembra o que estava fazendo quando Dumbledore morreu?
O fascinante de uma pergunta dessas é que ele morreu em dias – e até de formas – diferentes para cada um de nós. Para muitos pode ter sido em um domingo chuvoso, para outros foi num ensolarado dia de praia e para mim foi no conforto de minha cama, às 3h da manhã de um dia útil, após uma maratona de “só mais um capítulo e aí eu vou dormir” que consumiu praticamente o livro todo.
No mundo literário, não há muitos personagens que nos prendem a ponto de gerarmos lembranças tão marcantes de suas tragédias. Às vezes, porém, o drama é tão forte que foge da ficção e te deprime na sua vida cotidiana. Um dos momentos mais tristes da minha vida foi um sábado, a Globo transmitia São Paulo x Guarani enquanto eu lia “As Crônicas de Artur”, de Bernard Cornwell. O São Paulo sofreu um gol de virada no exato segundo que o meu personagem favorito do livro morreu em um duelo, fatos que em conjunto me deixaram deprimidos pelo resto do dia – quase pelo resto da vida.
Às vezes, o impacto emocional é tão grande que a melhor coisa a se fazer é simplesmente não ler o livro. Se você ler apenas os dois primeiros capítulos de Game of Thrones, pode conviver para sempre com a idéia daquele reino maravilhoso onde o rei Robert Baratheon governa alegremente aquele punhado de famílias pacíficas. Pronto. É melhor pra todos.
Em um dia de maio, quando eu já estava acostumado com o espírito assassino de George R. R. Martin, voltava de ônibus de uma viagem pelo norte de Portugal, me entretendo com o segundo livro, quando logo percebi que mais alguma tragédia terrível ia atingir a família Stark. A coisa mais inteligente que eu fiz foi fechar o livro imediatamente e esperar um tempo. Enquanto eu não lesse, meus queridos personagens continuariam vivos, então me contive o máximo possível para dar a eles algumas horas a mais de vida. Sou um rapaz misericordioso também.
Ainda em Game of Thrones, Ned Stark foi decapitado enquanto eu estava deitado em minha cama em Lisboa (não quero saber de reclamações de spoilers! ele era interpretado pelo Sean Bean, lógico que ia morrer!); e, em Londres, tive um almoço particularmente longo porque não conseguia parar de ler e de me aterrorizar com os acontecimentos do Red Wedding, fato que me colocou em depressão pelo resto do dia.
Por sorte, o caminho contrário nunca acontece e a depressão de nossas vidas não atinge nossos personagens. O que é particularmente útil quando queremos escapar da realidade chata. Quando tudo mais falhar, é só abrir aquele gibi com a certeza que o Cebolinha e o Cascão estão brincando alheios aos nossos problemas, a Mônica se diverte com o bullying dela – ao contrário de nós que sofremos com os nossos – e a Magali ignora o futuro provavelmente anoréxico que vai acometê-la na adolescência.
Os livros seguem a vida deles independentes das nossas. A recíproca nem sempre é verdadeira.