Aceite

Quando o fio dourado o prato atinge,
deves ter notado meu tamanho deleite,
uma indiferença teu semblante finge.
Desprezo. Desforro. Ignoro. Aceite.

Ganha brilho a batata, antes apática.
Antes cansada, agora altiva.
Sua face raivosa, antes simpática.
Antes te olhava, agora oliva.

“Chega deste óleo!”, desembestas a gritar.
Dou de ombros, ignoro, sem sequer me importar,
o azeite ainda cai, como se fosse nunca parar.

No tomate, no peixe, em cada folha de salada,
até mesmo no vazio, onde no prato não há nada.
Te desprezo. Te ignoro. E você enciumada.

Imploras aos céus, e eu também cá confuso:
Não sei por quê que eu te faço este mal,
contigo, e com o azeite, que cometo este abuso.
Não quero vinagre, não me importo com sal.

Seus olhos, tão lindos, já seguram o choro,
me dizes “o colesterol ainda vai te matar”.
Te ignoro. E aos poucos para ti eu morro.
Te deixo bem antes da minha vida acabar.

“É extra virgem”, me escapa um sussurro,
seu olhar fuzilando meu comentário tão burro,
o azeite caindo nas batatas ao murro,

pingando pelas entranhas da polpa cozida,
encharcando em óleo toda aquela comida.
E eu sinto você, a fugir de minha vida.

Levanta-te raivosa, batendo na mesa,
derrubando o vinho, quebrando a taça.
Marchas pra fora, com tanta certeza.
O azeite acabou, não há mais o que eu faça.

O peixe flutua no líquido viscoso.
Sua ausência agora me vêm tão à tona.
Tento focar em meu prato gostoso,
ao menos honrar esta nobre azeitona.

Te ouço a xingar, bater pernas na sala.
Com uma boa garfada, minha boca se cala.
Te vejo na sombra, a arrastar tua mala.

Rebato a gordura com um copo de leite.
Tu sais pela porta, sem que eu pleite.
Te ignoro, mas choro. Eu aceito. Aceite.

Guia da baixa gastronomia – edição México

Comida mexicana é um amplo leque de opções. Após um período no país, fica evidente que há mais do que guacamoles, quesadillas e tacos. E se descobre muito rápido que nenhum lugar do mundo faz comida mexicana como no México – provavelmente porque a vigilância sanitária não deixa.

Cada rua da Ciudad de Mexico é entupida por barraquinhas e carrinhos de vendedores exibindo tortillas, mangas, sucos, chapulines, sanduíches (aqui eles chamam de tortas), helotes, esquites, doces, salgadinhos, burritos, e o que mais alguém já teve a idéia de engolir. Eles se revezam em horários no decorrer do dia, para ampliar a disponibilidade de ofertas. E estão sempre cheios porque os mexicanos não páram de comer enquanto estão acordados.

Além do ácido cheiro de México frito que inunda suas narinas toda vez que você pisa em uma calçada, a falta de higiene desses lugares é outra característica gritante. Lugar perfeito para um novo guia da baixa gastronomia (conhecido no México apenas como “guia da gastronomia”).

La Casa de Toño

Pozole + Agua de Tamarindo
Total: 127 Mex$ (algo em torno de R$35,00)

Pozole é um prato tipicamente mexicano, inicialmente consumido pelas tribos aztecas que habitavam a região antes mesmo do Silvio Santos nascer. Uma iguaria sagrada, o negócio era uma sopa de vegetais misturada com o crânio de nossos inimigos, o que parece ser um grupo cada vez mais amplo se a receita continuasse a mesma.

Mas não. Desde que os espanhóis chegaram, eles aboliram esse negócio de canibalismo e hoje em dia o prato é supostamente feito com carne de frangos, vacas, porcos e outros inocentes que não fizeram mal para ninguém.

Tive a oportunidade de ir em um restaurante de uma das redes mais populares do México a servir Pozole: “La Casa de Toño”. Após uma curta caminhada pelas limpas ruas de Polanco (limpas para os padrões mexicanos, imundas para os padrões europeus, perfeitas para os padrões deste guia), chegamos no que parecia uma distribuição gratuita de sombreros: um coletivo de mexicanos aglomerado ao redor de uma porta. Era a fila de espera para entrar no restaurante, um sinal claro da popularidade do lugar. Peguei minha senha com a jovem mexicana que administrava a espera com um caderno, dividindo a folha em colunas e marcando as senhas e quantidade de pessoas na espera. Recebi o número 91. A tela divulgando as chamadas atuais exibia o número 68.

O tempo de espera foi gasto examinando com atenção o menu fixado na vitrine do estabelecimento: tostadas, enchiladas, tacos, quesadilla, enfrijoladas (uma espécie de quesadilla coberta com feijão) e molletes (uma espécie de pão com feijão) desfilavam a preços competitivos. Havia também o pozole, oferecido em dois tamanhos: o pequeno a 73 pesos e o grande a 79 pesos (uma diferença de aproximadamente um real, deixando evidente qual das escolhas era a correta), e cinco sabores: pollo (frango), maciza (um tipo de carne desfiada), cabeza (cabeça mesmo), surtido (cabeça e maciza misturados) e vegetables.

Meu pozole de cabeça, já meio comido

O Trem Tazara

O continente esquecido

Capítulo do livro “O Continente Esquecido”, com relatos organizados de uma viagem que fiz pela África em 2014.

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Se alguém algum dia disser que é uma boa idéia cruzar o leste africano de trem, duvide.

Viajar pelo continente por terra sempre é um desafio e uma aventura. Os ônibus são confusos, as linhas às vezes simplesmente não existem, os horários são meramente fictícios, sem contar o calor africano e o desconforto dos veículos mal-conservados. As raras opções de trem não parecem ser diferentes, a julgar pela minha ineficiente aventura na Tazara Railway, ferrovia que liga uma das cidades mais importantes da Tanzânia com o absoluto meio do nada na Zâmbia. Os vagões têm décadas de uso, os trens quebram com freqüência e os atrasos são praticamente uma certeza. Meu trem, por exemplo, tinha a partida agendada para as dez da manhã, mas só saiu da estação ao meio dia, totalizando um atraso de vinte e seis horas.

O mapa, em chinês, do trem Tazara

Para meus propósitos, era o roteiro ideal: partir das praias paradisíacas e savanas lotadas de animais selvagens da Tanzânia em direção ao meu próximo destino africano, as maravilhosas quedas d’água de Victoria Falls, no sul da Zâmbia, na fronteira com o Zimbabwe. Porém, as informações sobre o trem são praticamente nulas e nem mesmo algumas agências turísticas da Tanzânia pareciam ter conhecimento da existência de tal possibilidade de viagem. Em alguns momentos, cheguei a pensar que a linha não existia e era uma criação de minha mente perturbada.

Lá e de volta outra vez

Esta semana, no dia 09 de fevereiro de 2021, completou-se 10 anos da minha primeira partida do Brasil e da década de viagens e mudanças de vida que se sucederam depois.

Não é pouca coisa. Nesse período eu visitei 54 países, mais de 200 cidades (a mais visitada foi Paris, 17 vezes; fui para Bruxelas 7 vezes e foram 6 idas para Frankfurt, unicamente visitar um amigo, já que a cidade é chatíssima). Morei em cinco países diferentes e em mais de dez casas. Tive pelo menos meia dúzia de empregos. Abri algumas empresas. Conheci dezenas de pessoas incríveis.

Hoje eu invejo aquele jovem Paulo Velho, completamente imbecil que embarcou para Portugal com pouco dinheiro e sem saber quão difícil a vida poderia ser. Eu invejo ter essas aventuras todas pela frente, passar por tudo aquilo de novo, com todo o aprendizado que teria.

Estátuas que vou lutar pra não derrubarem

Como viajante, sou um grande entusiasta de estátuas e monumentos. Ainda mais nas terras abarrotadas de história como as do continente europeu, a impressão que dá é que alguns lugares tiveram mais estátuas do que reis.

Nem toda figura histórica que recebe uma estátua é, porém, um cidadão iluminado, livre de defeitos, uma pessoa bacana com quem adoraríamos tomar um cappuccino em uma tarde de outono. Muito pelo contrário, dependendo da época que estamos falando, a maioria eram calhordas da pior espécie, racistas, genocidas, bandidos, traficantes ou pessoas que andavam com o guarda-chuva aberto debaixo de toldos. Uma estátua pode sim ser encarada como um endosso: não pega bem pra Bélgica manter uma estátua do Leopoldo II – assim como talvez não pega bem pra Rússia deixar o corpo embalsamado do Lenin na praça vermelha, mas que é interessante ver como o feladaputa era pequeno, ah isso é. Mas assim como outras formas de arte, tais quais livros, filmes, quadros e peças de teatro, os monumentos podem ser vistos como um momento travado no tempo de uma era – e como a representação de um marco histórico de grande importância. Mais do que uma homenagem, vale a sua representação: Churchill tinha lá seus defeitos, mas é inegável que ele merece seu monumento; Tiradentes possuía seus escravos, mas o simbologismo de sua morte precisa ser lembrado; tem ainda uma estátua do Napoleão em Paris; e, pelo amor de deus, pesquisa um pouco pra não acabar depredando uma homenagem para alguém que lutou justamente a favor das mesmas causas que você.

Dado esse ponto, eu também sou a favor de trazer abaixo algumas representações históricas que não cabem mais em tempos atuais. O simbologismo por trás do ataque à estátua de Edward Colston em Bristol é lindo e fortíssimo e, ao contrário do Laurentino Gomes, eu até topo trazer pro chão o Borba Gato e colocar no lugar uma outra estátua, talvez uma estátua de 10 metros de um gato chamado “Borba” pra não dar tanto trabalho pra mudar as placas, é só inverter as palavras. Destruir algo é um sinal de mudança muito maior do que construir algo: a união recente da Alemanha se deu pela queda de um muro pela população; o símbolo da queda do Saddam foi a derrubada de sua estátua; a Revolução Francesa começou com a tomada da Bastilha, uma fortaleza medieval que foi completamente destruída, não sei se Luis XVI ia realmente perder a cabeça com um protesto pacífico e a manutenção de um patrimônio histórico francês tão imponente.

Debaixo da Polônia

Long-Read

Um texto que começa com a machetada na Polônia, e segue minha visita à cidade subterrânea nazista – com mais conteúdo didático histórico do que duas horas de History Channel.

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outros long-reads…

No último sábado do mês de janeiro do ano da graça de 2018 acordei cedo. Levei um tempo para lembrar onde eu estava: era um apartamento vazio, mas relativamente conhecido na região de Prenzlauer Berg, em Berlim. Era meu primeiro dia sem trabalho, após o fim do aviso prévio de meu pedido demissão no final do ano anterior. Eu já não possuía moradia própria, passei o mês todo morando de favor na casa de uma amiga portuguesa que no momento estava no Brasil.

Fui até a cozinha, e enquanto tomava um café com pão com manteiga, coloquei em uma sacola toda a comida que me restava: alguns pães, chocolates e uma variedade razoável de queijos. Como a casa ficaria vazia por algum tempo e eu não planejava me estender muito na cidade quando voltasse para Berlim, limpei a cozinha de tudo que fosse perecível e comestível para me servir de alimento durante a viagem – uma estratégia comum para quem viaja sem dinheiro. Minhas malas estavam já arrumadas, ocupando um canto do quarto – elas iam ficar ali durante os 17 dias que eu passaria viajando pelo leste europeu, passando por Polônia, Bielorrússia (a tradução para português de Belarus), Lituânia, Letônia (a tradução para português de Latvia) e Estônia. Naquela hora, porém, eu ainda não estava certo de qual seria meu roteiro, já que viajar no improviso é outra característica marcante de viajantes desprovidos de apego ao bom-senso. A única certeza que eu tinha é que eu iria para a Polônia naquela manhã.

De volta à Polônia

Tal qual o Império Germânico ou a União Soviética fizeram nos séculos passados, de tempos em tempos eu também voltava para a Polônia. Eu tenho um apego emocional com o país, já que para todo lugar que eu vou eu carrego um mimo que a Polônia me ofereceu: uma cicatriz no lado esquerdo da minha fuça. O caso ocorreu em 2011, na minha primeira visita à Cracóvia (a tradução para português de Kraków), uma história que já foi em diversas ocasiões oralmente contada mas que até então não tinha sido transcrita em mal-traçadas palavras.

O Relógio

Texto originalmente publicado no Medium, em novembro de 2018 na ocasião do primeiro fechamento do bar.
Republicado agora, já que a casa reabriu e fechou de novo.

Encerrou as atividades em outubro de 2018 novembro de 2019 o The Clock Rock Bar.

foda-se, vou ficar descalço na balada, dizia a gente várias vezes.

Das 465 amizades atualmente ativas no meu Facebook, 33% podem ser agrupados na categoria “The Clock”. São 152 vidas que se interligam a mim por conta de um bar em Perdizes. Algumas dessas pessoas são estimadíssimos amigos, que eu amo de todo meu coração e confio cegamente. Alguns são pessoas que eu considero meus melhores amigos e que mesmo com a distância das idas e vindas de minha vida, sempre me senti intimamente próximo. A imensa maioria desses são amigos que eu não tenho dúvida que manterei para sempre.

A Pedra do destino

Quem visita o castelo de Edinburgh tem a oportunidade de passar por uma sala na qual é possível ver as jóias da coroa em exibição. As fotos são proibidas, mas os visitantes podem ver um valiosíssimo cetro de 1494, uma reluzente coroa de 1540 e uma pedra. Um paralelepípedo de pedra tedioso, de 66cm x 42cm x 27cm, pesando cerca de 150kg, de um arenito enfadonho, com um anel de ferro em cada extremidade.

Que belíssimo exemplar de pedra

Eu não poderia me importar menos com jóias, mesmo que elas sejam mais velhas do que o Brasil, mas a história dessa pedra é o tipo de atração turística que mereceu minha atenção.

O telhado de vidro da casa do rato

Recentemente, a Disney destruiu uma das melhores franquias de herói do cinema ao demitir seu produtor/diretor/roteirista/visionário James Gunn por conta de piadas ofensivas postadas na rede social do passarinho azul Twitter entre os anos de 2007 a 2012.

É particularmente marcante o quanto esse parágrafo me deixa indignado, uma vez que ele é recheado de itens aos quais eu tenho o que pode ser chamado de um amor irritante: Adoro o James Gunn, assisto tudo quanto é filme de herói, sou perdidamente apaixonado pela Disney, o Twitter é minha rede social favorita, os anos de 2007 a 2012 moldaram meu caráter e tem pouquíssimas coisas que eu goste mais na vida do que piadas ofensivas. Talvez só queijo.

relaxa. é só maconha.

Desoxirribonucleico

Em uma tarde fria de novembro eu estava sentado à minha mesa do escritório que trabalhava em Berlim, esfregando vigorosamente um cotonete na parte interna de minhas bochechas. Apesar de um ou outro olhar mais curioso de meus colegas de trabalho, eles simplesmente me ignoravam e prosseguiam em seus afazeres. Depois de dois anos trabalhando lá, o fato de eu estar empenhado em atos estranhos não surpreendia mais ninguém.

Eu estava efetuando os procedimentos indicados pelo kit do myHeritage que eu havia recebido aquela semana. O myHeritage é uma empresa israelense de genealogia, que cria uma plataforma para que seus usuários criem árvores genealógicas, façam buscas em acervos familiares históricos e até busquem por parentes desconhecidos, entre outras utilidades.

Depois de 60 segundos esfregando o cotonete na bochecha esquerda, coloquei-o em um tubo de ensaio fechado, e repeti o processo com a bochecha direita. Fechei tudo no envelope e depositei no correio, usando o envelope internamente protegido com papel-bolha que faz parte do kit.

Há 20 anos, fazer um exame de DNA podia custar até R$10 mil, geralmente bancados pelo empresário Carlos Massa para gerar pancadaria no programa do Ratinho. Hoje diversas empresas oferecem kits para que os usuários recolham suas próprias amostras de corpo humano e enviem para a extração do código genético em laboratórios do outro lado do mundo. Dependendo do método e da empresa e da promoção aproveitada, o exame pode sair bem barato: por conta de uma promoção de Black Friday, o exame que eu fiz custou apenas 40 euros. A concorrência e o trabalho em larga escala ajudaram muito a baixar o preço dos exames. A maior dessas empresas, a Ancestry, possui ações na bolsa e um valor estimado de 3 bilhões de dólares (em 2017).