Em julho de 2013, num arroubo de cidadania e amor à pátria, este humilde blog fez um serviço a toda a população brasileira e ofereceu, sem custos adicionais, um útil dicionário ao manifestante moderno.
Quase dois anos depois, visando colaborar com essa nova onda de protestos que está sendo orquestrada pela Rede Globo (eu li isso num blog esquerdista – ver parte 1 deste dicionário), nós oferecemos um complemento para que você, meu caro alienado político, possa ser massa de manobra bem informada.
A hora e a vez daqueles que não têm do que reclamar
Desde junho, o Brasil tem visto um incontável número de manifestações com as mais diversas justificativas e reivindicações. Tudo começou com os protestos contra o aumento da tarifa do transporte público, mas logo surgiram outras demandas como o fim da corrupção, a necessidade de reforma política, o repúdio à pec 37, a desmilitarização da polícia e a democratização dos meios de comunicação, passando por questões petrolíferas, financeiras, educacionais e caninas. Nunca foi tão fácil ser um Popular Exaltado (piauí_55, abril 2011), aquele sujeito que cospe, xinga e faz discurso em cima do caixote, julgando-se permanentemente ultrajado.
Nos últimos meses, tivemos uma passeata pela volta dos militares, uma marcha da família contra o comunismo, uma tentativa de levitação do Palácio dos Bandeirantes e um ato contra a Copa de 1954.
Só nos faltou uma coisa, e é o que viemos aqui reivindicar: uma passeata que contemple a discreta (e sempre excluída) minoria satisfeita.
Não estamos nos referindo aqui aos latifundiários, aos banqueiros, aos donos de empresas de ônibus e aos que gastam 50 mil reais por noite numa balada, já que estes têm cada vez mais do que reclamar: o aumento do iptu, a ameaça do metrô em Higienópolis, a popularização da rúcula com tomate seco, a revista Veja que passou a vir fora do plástico; tudo isso é fonte de stress e incerteza para a fatia mais abonada da população, que vem perdendo seu lugar ao sol para os beneficiários do Bolsa Família.
Falamos daqueles cinco ou seis indivíduos que nunca têm do que reclamar, que estão sempre contentes com a vida em termos gerais e não se deixam abalar por congestionamentos, filas e vazamentos nucleares. Oriundos dos mais diversos estratos sociais, o que não parece fazer diferença, são sujeitos tranquilos e sempre sorridentes, absolutamente confortáveis com sua condição sobre a Terra. Eles não possuem porta-voz, não têm agenda de reivindicações e nem motivo para protestar. Por isso mesmo devem sair à rua, precisamente para dar amplidão à sua distinta voz, incompreendida e marginalizada pelos que estão sempre achando sarna para se coçar.
Isso não quer dizer que sejam alienados e reacionários; apenas não veem necessidade de se cansar com infinitas demandas e embates hostis. São estoicos e não botam a culpa em ninguém; acham graça em tudo o que veem e riem diante das dificuldades.
A marcha dos satisfeitos acontecerá numa tarde de sol, de chuva ou de terremoto (tanto faz) e até o momento conta com as presenças confirmadas do meu sobrinho de 4 anos, um programador de computadores, um carteiro, uma jovem francesinha e três senhoras nipônicas plenas de serenidade existencial. (Taxistas e barbeiros estão intrinsecamente impossibilitados de participar.) Será uma marcha pacífica, amigável e unânime, repleta de cartazes com os dizeres: “Estamos satisfeitos”, “Nada a reclamar”, “Estou bem, e você?”, entre outros.
Ninguém se queixará de fome, sede, joanete, vontade de fazer xixi. Alguns caminharão com as mãos nos bolsos, chutando pedrinhas e assobiando uma velha canção. Outros, mais combativos, repetirão bordões como: “Eu já falei, vou repetir/ Eu já falei, vou repetir.”
Em vez de Black Blocs, a linha de frente será formada por uma célula de hare krishnas tocando mrdanga e dançando de sandálias, felizes da vida. Logo atrás, um grupo de monges franciscanos e de idosos em excursão, seguidos por seus cachorros.
O trajeto da passeata não será previamente definido, mas para onde for está bom. Rumores darão conta de que o grupo pretende andar até Pouso Alegre ou Várzea Feliz. Eles caminharão pela calçada e apreciarão o belo trabalho efetuado em termos de manta asfáltica.
Contudo, o cansaço irá provocar baixas. Uma simples bolha no pé pode incomodar certo passante que, uma vez insatisfeito, será forçado pela própria consciência a ir embora. Braços cansados de erguer cartazes ameaçarão durante todo o trajeto a resistência física dos participantes, que não cederão sequer a um inconveniente fraquejar do bíceps. Não haverá queixumes constrangedores como o registrado numa manifestação recente, em que um militante exaurido pediu à linha de frente: “Ô, pessoal, vamos parar por aqui, fechar a rua num protesto sentado… Sério que vocês querem andar mais?”
Não haverá dissidências, discordância de pautas e nem líderes do movimento. A massa acatará com alegria toda sugestão de rota indicada pela polícia. Ao passarem diante de hospitais, todos farão silêncio e rezarão pelos enfermos.
Durante a passeata, aliás, ninguém será hostil com os transeuntes. Em vez de: “Quem não pula quer tarifa”, a turba irá ponderar: “Quem não pula, tudo bem! E quem pula, bom também!”
Partidarismo não será um problema: a marcha contará com a presença apenas de partidos políticos totalmente satisfeitos, o que não deve existir na sociedade atual.
A grande imprensa irá registrar uma única ocorrência de discórdia: um sujeito que, convenhamos, começou a elogiar demais tudo o que estava aí, cruzando perigosamente a linha de quem possui uma reivindicação. Ele portava um cartaz com os dizeres: “Estou tão feliz que não me importaria se piorassem um pouco a situação econômica.”
Sua postura causou celeuma imediata e convidaram-no a se retirar do ato, junto com os que reclamaram do cartaz.
A polícia estará presente, e terá seu trabalho efusivamente elogiado. Se houver repressão, será recebida com grande disposição de espírito. “Este gás lacrimogênio realmente limpou minhas vias aéreas”, dirá um. “Mais pra esquerda”, dirá outro, enquanto apanha com o cassetete nas costas. A manifestação se dispersará por caminhos que manterão todos satisfeitos, e terminará na hora em que acabar.
Numa época em que reclamar e odiar é algo tão popular, nossos bravos satisfeitos estarão por aí, verdadeiros heróis da sociedade. Serão criticados, chacoteados por humoristas e receberão títulos ofensivos, mas não se importarão. Ao contrário: ficarão lisonjeados.
No dia seguinte, o prefeito mencionará o ato em pronunciamento à tevê e afirmará enfaticamente que suas portas estão abertas para toda e qualquer crítica do grupo.
Escrito em conjunto com:
Vanessa Barbara
Este texto foi escrito em parceria com Vanessa Barbara.
Vanessa é jornalista e escritora, colunista do International New York Times e da Folha de S.Paulo. Publicou Noites de Alface, da Alfaguara e comanda o editorial folhoso A Hortaliça – http://www.hortifruti.org/
De todos as cidades que eu já visitei, a que eu acho mais parecida com São Paulo é Istanbul. Gigantesca, com uma população de 14 milhões de pessoas, um trânsito caótico, malha metroviária deficitária, um transporte público à base de carros e ônibus e uma população extremamente receptiva e jovem.
No final de maio, um pequeno grupo de pessoas organizou um protesto em Gezi Park, uma praça na região de Taksim, no centro da cidade. O protesto era pra preservação das árvores do parque, que ia passar por uma reformulação para a construção de um shopping center. Os manifestantes agiram de forma extremamente pacífica, simplesmente ocupando a praça e ficando em frente às máquinas que estavam lá para retirar as árvores centenárias. Não havia um veículo de imprensa sequer para acompanhar a manifestação.
A polícia agiu de forma violenta, usando canhões de água e spray de pimenta.
No dia seguinte, houve um novo protesto, dessa vez com mais pessoas. A polícia novamente reagiu violentamente.
E no outro dia o protesto foi maior ainda. As linhas de metrô que levavam a Taksim foram fechadas para dificultar a chegada dos manifestantes, mas a população de Istanbul se uniu, foram todos a pé e uma multidão se reuniu para ser novamente brutalmente contida pela polícia, que abusou das bombas de gás lacrimogênio, efeito moral e até ateou fogo na barraca dos manifestantes.
Depois disso, o protesto só cresceu e se espalhou. Agora ele não se limitava só à preservação da praça. Ele se transformou em uma gigantesca revolta contra o governo, extremamente conservador e historicamente religioso. Durante todo esse tempo, a imprensa turca não cobriu os protestos – o povo combinava os eventos e passavam as informações entre si usando simplesmente a internet e redes sociais. Durante um dos protestos, a CNN estava exibindo um documentário sobre pinguins, transformando o animal num dos símbolos da censura turca.
Os acontecimentos de Taksim foram simplesmente a fagulha que o povo precisava para se unir contra o governo.
Sempre achei Istanbul e São Paulo muito parecidos mesmo.
A nova mania entre a gente diferenciada é sair às ruas em eventos populares de alguma coisa. É tanta marcha que até o Geraldo Vandré já está de saco cheio.
A marcha é a forma física do hashtag; é o direito do povo; é a maneira que o popular encontrou para se sentir útil da forma mais fácil e barata possível.
É uma coisa que está no DNA do brasileiro, afinal o próprio Carnaval pode ser considerado uma marcha: é a marcha dos desocupados. São pessoas que saem às ruas para não irem a lugar nenhum… Até as músicas se chamam “marchinhas”…
Com tantos protestos e marchas por aí, não fique de fora dessa. Crie já a sua própria marcha!
Para uma marcha ser bem feita, ela deve partir de um princípio inalcançável ou de uma palavra chamativa. Melhor se tiver cobertura da imprensa e cartazes que pareçam ter sido feitos por alunos de segunda série. Pontos extras se entrar em confronto com a polícia.