É engraçado como cada país da Europa têm os seus hábitos etílicos bem definidos: a Escócia tem sua paixão por uísque, a Bélgica tem suas cervejas trapistas, a França e seus vinhos, a Alemanha e suas weiβbier, a Inglaterra e suas “real ales” a Rússia e a Polônia com suas vodkas e a Irlanda consumindo em excesso qualquer coisa que contenha alcóol, deixando irlandeses bêbados buscando brigas em bares.
A cerveja é uma parte importantíssima da vida cotidiana alemã. Hitler instituiu as reuniões do partido nazista em uma cervejaria. Ele mesmo não bebia, mas sabia que se quisesse captar a atenção do povo, o lugar que ele teria que ir eram os bares. Em Munich, todo trabalhador tem o direito de beber até 500ml da bebida em horário de trabalho. Um dos mais antigos decretos alimentares do mundo é a Reinheitsgebot, a lei da pureza da cerveja alemã, promulgada em 1516 e válida até hoje.
De todas as cidades alemãs, Munich é certamente a minha favorita. Sou fã das tradições bavárias, da arquitetura antiga e reconstruída da cidade, das biergartens, da Oktoberfest, das “alemãzinhas de olhos lindos, meu amor!” e das histórias e lendas em torno da cerveja. Uma de minhas histórias preferidas remete ao ano de 1823, durante o reinado do meu rei alemão favorito: Ludwig I.
Perto da Marienplatz, na parte central da cidade de Munich, fica a Max-Joseph Platz. Max-Joseph, talvez coincidentemente, era o pai do rei Ludwig I. A praça hoje é conhecida pelo Bavarian National Theatre, um imponente prédio que é a casa da Bavarian State Opera. A construção original datava de 1810, obra encomendada pelo rei Maximiliam I. Palco de concertos hedonistas e apresentações reais, o teatro era repleto de velas e cortinas, material propício para propagar fogo assim que a banda Gurizada Fandangueira subisse no palco.
Era um inverno rigoroso naquele ano. Foi na noite do dia 14 para o dia 15 de janeiro de 1823 que o fogo começou – ninguém sabe direito porquê, apesar que alguns apontam que foi por conta de um sinalizador usado pelo sanfoneiro da apresentação. Os projetistas do teatro, astutos que só eles, já tinham um plano alternativo para combate de incêndios no local. O domo do prédio foi projetado de forma a estocar água, que seria usada para apagar o fogo em caso de emergência. Porém, nada é fácil para os alemães, e o moderníssimo sistema de tubulações de água não estava funcionando pois os canos estavam congelados.
O fogo se espalhou rapidamente. A população da cidade se uniu no combate ao incêndio. Agora eles precisavam de uma fonte de líquidos disponível e abundante para apagar o fogo o mais rápido possível.
A cervejaria Hofbräuhaus foi estabelecida em 1589 como a cervejaria oficial da monarquia. Ainda hoje é uma empresa do governo, o que permite aos moradores da cidade irem ao bar sob o pretexto de ajudar com a arrecadação de impostos. O prédio atual da cervejaria, no centro de Munich, foi (re)construído em 1897, exatamente aonde residia o antigo, somando hoje já mais de 400 anos de história no mesmo lugar – que, coincidentemente, fica a 350 metros da Opera de Munich, que naquela noite de 14 de janeiro de 1823 precisava urgentemente de um grande fornecimento de qualquer líquido que pudesse apagar o incêndio que a consumia.
O resto da história é altamente previsível: Os homens enfileiraram-se no caminho que ligava os dois prédios, levando os barris de cerveja da Hofbräuhaus até a Opera e jogando o precioso líquido para apagar o fogo (o contrário do nosso habitual, quando tomamos cerveja para ficarmos de fogo). Como bons alemães, porém, não é fácil ir passando a cervejinha assim e, de vez em quando, a cada troca de mãos, um gole de cerveja descia pela goela de um honrado trabalhador que só estava lá para ajudar. Vez ou outra algum barril poderia ser extraviado em algum ponto da linha – afinal, é de cerveja que estamos falando! Com o decorrer da noite e prosseguimento dos trabalhos, conforme os barris iam passando, a linha de alemães ia se embriagando quase que misteriosamente. O controle do fogo estava praticamente impossível (tanto da ópera como dos bombeiros) e, no final, alemães bêbados estavam atirando barris vazios nas chamas, o que acabava por alimentar mais o fogo do que combatê-lo.
A Opera foi quase totalmente destruída. Arrasado e sem recursos para reconstruí-la, o Rei Ludwig I foi injusto e enfático ao dizer “A cerveja destruiu este teatro e ela há de reconstruí-lo” ou qualquer discurso parecido, em alemão rebuscado do século XIX. Assim, por um mandato real, a bebida recebeu uma taxação que seria destinada a ajudar a reconstruir o devastado edifício.
O povo alemão colaborou tanto com o consumo de cerveja para tão nobre fim que, em 1825, a realeza já estava terminando a reconstrução da Opera, quase toda financiada com o dinheiro da cerveja. A taxação, porém, não diminuiu depois da finalização das obras. A taxa da cerveja ajudou a monarquia a construir um novo palácio, reformar alguns outros prédios, comprar algumas tapeçarias persas e mais essas coisas que reis e deputados mineiros gostam.
Como tudo, porém, com o tempo, o dinheiro extra começou a não parecer suficiente. Mas desta vez, Ludwig era um homem com um plano. Ele já tinha uma fórmula comprovadamente eficaz de juntar dinheiro de forma rápida e, em 1844, o rei decidiu aumentar o imposto da cerveja. O que se seguiu depois ficou conhecido como “A grande revolta da cerveja”.
Após o decreto do aumento do preço da cerveja, em 1 de maio de 1844, uma multidão de alemães entrou em confronto com a polícia, numa manifestação que durou cinco dias e só acabou depois que o rei finalmente decidiu baixar o preço da gloriosa bebida em 10%.
Apesar dos problemas com a taxação de bens imprescindíveis do dia-a-dia germânico, o Rei Ludwig I eternizou-se positivamente na história de Munich (e, porque não, da humanidade). Em 12 de outubro de 1810, o rei casou-se com sua amada esposa Therese. Para celebrar o casório, ele promoveu uma festa no local que é até hoje conhecido como “Theresienwiese” (campos de Therese, em alemão). A festa foi um sucesso tremendo. Tanto que, atendendo ao clamor popular, o rei decidiu repetir o evento no ano seguinte. E no seguinte, e no seguinte e no seguinte…
Hoje em dia, a festa ainda acontece, mundialmente conhecida como Oktoberfest, no mesmo lugar aonde foi a primeira vez, no longínquo ano de 1810. Ao invés de corridas de cavalos e danças típicas ao redor dos poles, porém, as edições recentes contam com turistas italianos e hotéis lotados.
Mas, desde então, rei nenhum decidiu se intrometer na cervejinha alemã.