Comida mexicana é um amplo leque de opções. Após um período no país, fica evidente que há mais do que guacamoles, quesadillas e tacos. E se descobre muito rápido que nenhum lugar do mundo faz comida mexicana como no México – provavelmente porque a vigilância sanitária não deixa.
Cada rua da Ciudad de Mexico é entupida por barraquinhas e carrinhos de vendedores exibindo tortillas, mangas, sucos, chapulines, sanduíches (aqui eles chamam de tortas), helotes, esquites, doces, salgadinhos, burritos, e o que mais alguém já teve a idéia de engolir. Eles se revezam em horários no decorrer do dia, para ampliar a disponibilidade de ofertas. E estão sempre cheios porque os mexicanos não páram de comer enquanto estão acordados.
Além do ácido cheiro de México frito que inunda suas narinas toda vez que você pisa em uma calçada, a falta de higiene desses lugares é outra característica gritante. Lugar perfeito para um novo guia da baixa gastronomia (conhecido no México apenas como “guia da gastronomia”).
La Casa de Toño
Pozole + Agua de Tamarindo
Total: 127 Mex$ (algo em torno de R$35,00)
Pozole é um prato tipicamente mexicano, inicialmente consumido pelas tribos aztecas que habitavam a região antes mesmo do Silvio Santos nascer. Uma iguaria sagrada, o negócio era uma sopa de vegetais misturada com o crânio de nossos inimigos, o que parece ser um grupo cada vez mais amplo se a receita continuasse a mesma.
Mas não. Desde que os espanhóis chegaram, eles aboliram esse negócio de canibalismo e hoje em dia o prato é supostamente feito com carne de frangos, vacas, porcos e outros inocentes que não fizeram mal para ninguém.
Tive a oportunidade de ir em um restaurante de uma das redes mais populares do México a servir Pozole: “La Casa de Toño”. Após uma curta caminhada pelas limpas ruas de Polanco (limpas para os padrões mexicanos, imundas para os padrões europeus, perfeitas para os padrões deste guia), chegamos no que parecia uma distribuição gratuita de sombreros: um coletivo de mexicanos aglomerado ao redor de uma porta. Era a fila de espera para entrar no restaurante, um sinal claro da popularidade do lugar. Peguei minha senha com a jovem mexicana que administrava a espera com um caderno, dividindo a folha em colunas e marcando as senhas e quantidade de pessoas na espera. Recebi o número 91. A tela divulgando as chamadas atuais exibia o número 68.
O tempo de espera foi gasto examinando com atenção o menu fixado na vitrine do estabelecimento: tostadas, enchiladas, tacos, quesadilla, enfrijoladas (uma espécie de quesadilla coberta com feijão) e molletes (uma espécie de pão com feijão) desfilavam a preços competitivos. Havia também o pozole, oferecido em dois tamanhos: o pequeno a 73 pesos e o grande a 79 pesos (uma diferença de aproximadamente um real, deixando evidente qual das escolhas era a correta), e cinco sabores: pollo (frango), maciza (um tipo de carne desfiada), cabeza (cabeça mesmo), surtido (cabeça e maciza misturados) e vegetables.
Decidi pedir cabeça, encantado pela idéia que o menu não explicitava qual cabeça era, podendo realmente ser a cabeça de nossos inimigos que compusesse a receita. Porém, decidi pedi o surtido, que vinha também com a tal maciza – porque eu já havia comido um taco disso aí e era bom. Para ajudar a descer tudo, uma água de tamarindo (mas não precisava, já que era uma sopa).
As senhas de chamada correram rápido e em menos de meia hora fomos enfiados para dentro do grande salão cheio de típicos executivos mexicanos almoçando em meio ao horário de trabalho e garçons correndo. Dois funcionários terminavam de arrumar uma mesa apressadamente.
Tudo parecia abraçar o conceito de fast-food: o menu estava impresso debaixo de um tampão de vidro da mesa, assim o garçom não precisava se preocupar em trazer e recolher cardápios. Uma ficha de pedido era entregue com uma caneta e o próprio cliente marcava suas decisões alimentares nela. Tortilhas foram servidas com limão e, pela primeira vez no México, um espremedor de plástico acompanhava tudo, para que o cozinheiro não tivesse que gastar tempo espremendo nada. Os garçons corriam de um lado para o outro desesperados, provavelmente os únicos mexicanos a trabalhar sério em restaurantes de todo o país.
A comida e a bebida chegaram rápido. Espremi um limão em cima da sopa, e meio limão em minha água de tamarindo, por nenhum motivo além de demonstração de poder sobre os frutos. O pozole estava bem saboroso: picante, mas nem tanto. A carne desfiada estava mole e a cabeça (era muito evidente quando uma colherada vinha com um pedaço de cabeça, mesmo eu nunca tendo comido cabeça na minha vida) era do tipo de textura que eu esperava que uma cabeça fosse: uma espécie de cartilagem que era simultaneamente mole, mas oferecia uma certa resistência na mordida. Um gosto meio engordurado, que sabia bem com a picância da sopa, mas com uma consistência (na falta de palavra melhor) inusitada.
Com a mesma velocidade que fomos atendidos eu engoli minha sopa. A fila de espera do lado de fora é meio intimidadora e não convém passar tempo demais moscando no lugar, então pagamos e dei o fora daquele salão cheio de mexicanos que condenavam o turista de mãos limpas que não pertencia ao grupo.
Cantaritos el Güero
Cantaritos (1 litro)
220 Mex$ (algo em torno de R$61,35)
No pueblo mágico de Tequila, em Jalisco, México, a tequila é a grande estrela, obviamente. Com cerca de 150 destilarias na região (de acordo com o Google, eu fiz minha lição de casa), é possível fazer tours andando em ônibus no formato de barril, garrafa, copo ou até de agave.
A tequila é uma bebida de produção bem controlada: dentre todos os tipos existentes de agave, somente o agave azul pode virar tequila. Qualquer outra espécie da planta destilada vira mezcal (o que, na minha opinião pós-México, é melhor do que tequila).
Mas, ao contrário das festas que eu frequento no Brasil, onde eu simplesmente viro um shot atrás do outro com sal e limão até acordar no chão de alguma casa sem lembrar como cheguei lá, a forma mais comum de se consumir tequila em Jalisco é com um drinque composto por uma mistura de suco de laranja com suco de toranja, limões minúsculos espremidos com a raiva de um centrista votando no Brasil, sal jogado da forma mais despretensiosa possível, soda até encher o caneco e, é claro, tequila. O tal drinque se chama cantarito e o lugar mais tradicional para encher a cara disso é no Cantaritos el Güero, que oferece basicamente só a bebida.
Com uma variedade ofensiva de marcas de tequila a diversos preços, estão disponíveis cantaritos nos tamanhos: 500 ml, 1 litro, 7 litros, 14 litros e 21 litros. Porque esse pulo de 1 litro para 7 litros? Quem calculou esse avanço de fibonacci, gerando a progressão matemática [0,5-1-7-14-21] e julgou uma dinâmica de volumes adequada para vender drinques de tequila?
De qualquer forma, optamos pelos cantaritos de 1 litro (7 litros é realmente um abuso e a opção de 500ml deve ser exclusiva para abstêmios). Pegamos uma das diversas filas na entrada do estabelecimento onde entusiastas ansiosos por seus drinques aguardam eufóricos. Diversos barmans (todos homens, num exemplo gritante de micromachismo) trabalham incessantemente: atrás do balcão há 4 homens dedicados a fazer suco de laranja e toranja, que não pára de ser servido. No caso da opção jumbo (um balde de argila que comporta 21 litros), são derramadas três garrafas de tequila dentro do recipiente que já continha um saco de cinco quilos de gelo e duas jarras de suco. Na opção mais humilde escolhida, de apenas um litro, o atendente dosa o álcool usando um chifre de touro.
– Quer tequila em dobro? – perguntou o barman.
– Sim – respondeu minha amiga, com um brilho nos olhos.
Os copos de argila foram entregue. A borda é melada com uma espécie de geléia de pimenta e salpicada com sal de gusano. O copo é um mimo ao cliente; ele pode levar de recordação ou colocar para vender no Mercardo Livre. Mas, mais do que o fornecimento de copos, impressiona o consumo de tequila no local. Apesar de ser uma afirmação que eu não tenho como provar e que eu tirei do meu próprio rabo, me sinto bem seguro em afirmar que El Güero é o estabelecimento que mais vende tequila no mundo. As gigantescas caneconas de 21 litros poderiam ser vistas em diversas mesas.
E mesas não faltavam: o estabelecimento se expande por uma grande área aberta onde pesadas banquetas de troncos maciços de madeira e mesas artesanais se espalham debaixo de coberturas de palha. Diversas bandas tocam em cantos completamente aleatórios do espaço, por vezes tão próximas uma da outra que é possível, ouvir duas ao mesmo tempo, se for do agrado do cliente com FOMO mais atacado.
Não à toa, o espaço todo me remeteu aos biergartens de Munich, como o da Hofbrauhaus. A área é tão bem pensada que há até uma área designada para o borracho favorito gorfar, num nível de organização incongruente com o país em que ela está contida.
E sim, a bebida é boa. É tequila na terra da tequila, não poderia ser diferente.
Dorilocos de rua (em Chapultepec)
Ricos Dorilocos
Total: 20 Mex$ (algo em torno de R$5,50)
Outra iguaria da culinária mexicana que provavelmente descende dos tempos dos maias é o Dorilocos. Pode parecer nada mais do que um pacote de Doritos aberto preenchido com lixo até o topo e é isso mesmo, não vamos enganar ninguém.
Decidi ir atrás de uma das dezenas de barracas do parque de Chapultepec. Longe dos cartéis organizados dos camelôs paulistas e dos traficantes colombianos, os preços variam. Como eu não prezava pela qualidade, optei pela opção mais barata possível. Dorilocos poderiam ser feitos em sacos de salgadinho tamanho pequeno ou grande (o dobro do preço na opção maior). Optei pela opção pequena, ainda estava com o bucho cheio de guacamole caseiro.
A senhora prontamente abriu um pacote de Doritos e começou a lotar de coisa, como um carioca recheando um cachorro-quente: pepino, cenoura ralada, amendoim, e pedaços de gordura cortados à la juliana (os tais cueritos).
– Quer molho? – perguntou ela.
– É muito picante? – perguntei, calejado pela experiência de um mês no México.
– Não. – mentiu ela com a cabeça, só depois de já ter enchido o saco de salgadinhos de molho. Por fim, ela fincou um garfo em cima de tudo, esticou a embalagem ao meu alcance e sacou o dinheiro da minha mão com uma destreza ímpar.
É difícil chegar ao Doritos. Como a embalagem de salgadinho é aberta e depois preenchida, a parte crocante fica toda embaixo. O cuerito é a pior parte da iguaria: é uma gordura fria e elástica, remetendo minha vida ao episódio de Friends onde Ross é desafiado a beber um copo de gordura para provar seu amor por Rachel, mas sem a Jennifer Arniston para me impedir.
O molho não é tão picante quanto o padrão mexicano, mas ainda pode pegar desprevenido o viajante com paladar mais infantil. Conforme vai se avançando na degustação, vai se encontrando Doritos levemente encharcados de molho e o desafio de se caçar os salgadinhos com o garfinho de plástico é uma experiência quase lúdica.
Ao final Dorilocos não é uma parada obrigatória para todo viajante que chega na Ciudad de Mexico, mas é (surpreendetemente) uma das coisas menos nojentas que a cidade pode oferecer. Dificilmente uma comida com essa configuração funcionaria em qualquer outro lugar do mundo, então não vou jogar para frente minha idéia de vender MaluCheetos no Parque do Ibirapuera, metendo queijo ralado, salsicha e requeijão num pacote de Cheetos.
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Outros roteiros:
Roteiro da baixa gastronomia – edição África
Roteiro da baixa gastronomia de São Paulo #3
Roteiro da baixa gastronomia de São Paulo #2
Roteiro da baixa gastronomia de São Paulo #1
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