Roteiro da baixa gastronomia – edição África

Um guia com os piores lugares para se comer mal sem gastar muito pelo mundo

Kigali – Ruanda
Refeição para dois
Custo total: 5600 Francos ruandeses (cerca de R$20)

Em algum lugar na Old City de Kigali, próximo à KN144 Street, aonde homens saem com seus cabritos para passear e mulheres carregam com destreza toneladas em suas cabeças, fica este pequeno restaurante caseiro completamente não-turístico e tipicamente africano. O lugar é uma casa miserável, com mesas de madeira e cadeiras de plástico. O forro do teto apresentava diversas infiltrações visíveis e um buraco permitia ver o telhado, com um raio de luz do sol penetrando o ambiente.

Na entrada, numa tentativa de combater a cólera, um barril azul com uma torneirinha está disponível para os clientes lavarem as mãos, despejando a água em um balde – que provavelmente volta ao barril depois.

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Restaurante sem nome de Kigali

Cheguei ao lugar com meu guia e host, Patrick. O menu é inexistente e o prato é aquele que tem no dia e você já deveria se dar por satisfeito por estar comendo. E comendo bem: Eram quatro ou cinco pratos, um com arroz, um com batatas, um com meia costela e pata de frango e outro com outra costela e a asa da ave. Nada de carne de peito para nós. Folhas de cassava completavam a refeição. Para conseguirmos separar a comida em pratos individuais, tivemos que trabalhar numa readequação dos alimentos, jogando as fritas em cima do arroz, espalhando as batatas pelos outros pratos e misturando tudo de forma irremediável.

Talvez, por ser o único homem branco do estabelecimento (e, talvez o único homem branco em um raio de algumas dezenas de quilômetros), fui agraciado com a oportunidade de usar talheres, que todos ao meu redor consideravam desnecessários. A comida era manejada com as mãos. Patrick pegava uma batata usando o indicador e o polegar, dobrava-a para capturar todo o arroz possível ao redor, empurrando-o com o mindinho e, com uma destreza invejável, levava tudo à boca. Eu tentei manter os modos culinários caucasianos por algum tempo, mas desisti quando comecei a comer o frango: a asa e a pata simplesmente se recusavam a separar-se de suas amigas costelas e era necessário usar as duas mãos para dobrar e torcer o osso até encontrar algum espaço que fosse possível encaixar uma mordida na carne dura e mal-cozida. O arroz também estava um passo antes do intragável e eu encontrei uma pedra de aproximadamente quatro centímetros no meio dele. As batatas, em compensação, estavam bem cozidas e fritas só o suficiente para proporcionar uma leve crocância. O molho de folhas de cassava foi outra agradável surpresa. Fanta Citrus foi um bom acompanhamento para fazer o trabalho da saliva e ajudar a dissolver o arroz.

Os pratos eram tão fartos que não conseguimos comer tudo. O que, sinceramente, me deu um certo peso na consciência, afinal, há tantos jovens passando fome no Brasil e nós lá desperdiçando comida na África…

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Borasafi Hotel – Kenya
Café da manhã
Custo total: 30 K$h (menos de um real)

Em algum ponto inóspito da Moi South Lake Road, em uma região do Kenya conhecida pelo Lago Neivasha, aonde girafas atravessam a rua e pobres africanos vivem em condições deploráveis, há um butchery. É uma casa miserável com uma pequena porta do lado direito e uma vitrine aonde carnes ficam expostas sem qualquer refrigeração ou maiores cuidados. Entrando pela porta, onde fios de nylon com algumas bolinhas aleatoriamente penduradas representavam as ruínas do que em algum momento do século passado tinha sido uma cortina de miçangas, terminamos em um pequeno salão deplorável, sem energia elétrica, com velas queimando sobre as mesas e milhares de moscas voando, pousando nas paredes, nas mesas e nas carecas dos africanos.

Café da manhã à luz de velas no Kenya
Café da manhã à luz de velas no Kenya

Meu guia fez o pedido em suaíli, a língua oficial do Kenya. Em pouco tempo, nos foi servido chapati e chá africano. Chapati é uma massa frita, feita basicamente de farinha, água e algum ingrediente mágico que fez meu paladar remeter ao saudoso gosto dos afilhós que minha avó vazia nos sábados à tarde. O chá africano é uma mistura de ervas, servida com leite, em uma temperatura próxima à ebulição da água. O chá estava tão quente que eu mal conseguia me aproximar da caneca para soprá-lo (uma caneca branca, de plástico, semi-rachada e que provavelmente é lavada uma vez por semana). Isso provocou olhares de chacota do negro mais próximo (para variar, eu era o único branco do recinto).

Mas tudo estava mais saboroso do que se espera para o ambiente. Um casal de moscas interrompeu o vôo para fazerem sexo freneticamente na minha frente, exibindo uma micro-experiência selvagem pouco divulgada dos safaris africanos. Uma televisão pendurada na parede próxima à cozinha, mostrava um pastor pregando em suaíli, com uma bíblia na mão e gritando freneticamente. Durante os intervalos comerciais, uma empresa de detetização africana exibia milhares de baratas correndo por uma cozinha, numa cena ligeiramente aflitiva. Outro comercial sobre branqueamento dental mostrava, em close e com detalhes, como funcionava o método deles de tirar manchas dos dentes de africanos, numa cena desnecessária e nojenta. Mas nem o pastor, nem as baratas, nem o comercial dental e muito menos o sexo de moscas prejudicaram a experiência do café da manhã.

A existência daquela televisão em funcionamento em um ambiente sem luz elétrica aparente era um mistério, mas provavelmente eles tinham alguns watts de potência sobrando também para as geladeiras de Coca-Cola. É bom destacar a eficiência logística da Coca-Cola, aliás. Em um ambiente inóspito, isolado, miserável e cercado de animais selvagens, a distribuição do refrigerante é mais eficaz do que a de saneamento básico.

A conta total deu 30 xelins quenianos – algo em torno de R$0,85. O lugar não aceita cartões.

O responsável logístico da distribuição da Coca-Cola devia trabalhar para a ONU.
O responsável logístico da distribuição da Coca-Cola devia trabalhar para a ONU.

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Victoria Falls Town – Zimbabwe
Hambúrguer com Fanta Uva
Custo total: US$ 2,50 (cerca de R$120, assim que a hiper-inflação atingir a todos nós)

Ali, na quina do Zimbabwe, próximo às magníficas quedas d’água de Victoria Falls, há um mercado. Às portas do mercado, um rapaz vende hamburgueres. O dia está ensolarado e faz um calor (literalmente) africano. A churrasqueira está montada ali do lado e três tigelas repousam em cima de uma mesa de plástico com suas saladas. “O hambúrguer custa um dólar”, diz ele, mostrando a composição do lanche: uma cama de alface, hambúrguer, molho de tomate espalhado com um pincel por cima da carne, tomate e cebola. “Não tem queijo?”, pergunto eu. “Não. Queijo eu devo começar a colocar a partir do mês que vem.”, responde o jovem vendedor solitário, quase me convencendo a adiar minha viagem de volta em algumas semanas só pra degustar a iguaria com queijo.

“O ticket você compra no caixa do mercado”, diz ele, quando eu lhe estendo um dólar, me fazendo lembrar que a burocracia africana pode ser encontrada até nos mais reles street foods. Aproveitei a visita ao mercado para comprar um refresco.

Uma das coisas mais legais da África é a sua imensa diversidade de estilos de Fanta. Dependendo do país, além da nossa popular Fanta Laranja, é possível encontrar sabores como Maçã, Abacaxi, Limão, Citrus, Blackberry ou a espetacular Fanta Maracujá. Escolhi uma Fanta Uva por puro saudosismo dos tempos de orkut (US$ 1,50).

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Jornais africanos abastecem seu público com assuntos relevantes

Com minha nota fiscal do hambúrguer em mãos, volto à frente do mercado e o rapaz monta meu lanche e o deposita em uma embalagem de isopor. Uma pequena coleção de mesas e cadeiras em frente ao mercado pareceu convidativa para completar a experiência degustativa. Divido a mesa com um rapaz que comia arroz com as mãos, de frente a uma parede de anúncios aonde é possível ver a capa dos jornais do dia – Mnangagwa se envolveu em um acidente de carro e alguma criatura misteriosa se banqueteia no sangue de galinhas. O lanche estava agradável e a Fanta Uva deu aquele gostinho de infância. Ao final ainda pude lavar minhas mãos com uma jarra de água quente (ou estava quente graças ao calor do dia?) que repousava na muretinha e eu deduzi que deveria servir para esses princípios. A África requer atitude às vezes…

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Hambúrguer com fanta uva. Para eu me sentir com 12 anos.

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Zanzibar Pizza – Zanzibar
Suposta Pizza peculiar e caldo de cana
Custo total: 3700 Tz$ (cerca de R$ 5,50)

A costa leste da ilha de Zanzibar, na Tanzânia, é conhecida por ter o que muitos consideram as praias mais lindas do mundo, com uma areia tão fina e branca que parece que estamos andando em um fluído não-newtoniano e uma água tão cristalina que é possível ver sua própria urina saindo do calção e se diluindo nas águas do Oceano Índico.

Frutos do mar à venda em Zanzibar
Frutos do mar à venda em Zanzibar

Do outro lado da ilha, longe dos resorts luxuosos que atraem turistas europeus endinheirados, Stone Town fervilha de movimento. Na praça de Forodhani Gardens, após assistir ao lindíssimo pôr do sol (sem aplausos, o que evidenciava a ausência de cariocas nos arredores), uma dúzia de barracas de comida são montadas. Todas vendem basicamente a mesma coisa e exatamente pelos mesmos preços, se dividindo em frutos do mar no espeto ou “Zanzibar Pizza”. Um turista branco caminhando pela praça é garantia de ser abordado por uma variedade imensa de vendedores muçulmanos chatos, tentando convencer que a barraca dele é a melhor da região. Os africanos abordam turistas de forma tão inconveniente e agressiva que faria aquela garota nova-iorquina que gravou o vídeo andando na rua repensar se ela realmente merecia tantos views.

Ao turista faminto resta escolher a barraca com o recepcionista menos chato (ou mais convincente, varia de cada pessoa). Escolhi para mim uma Zanzibar Pizza, e pude acompanhar toda a preparação da iguaria. Começa com o cozinheiro muçulmano abrindo uma bolinha de massa finíssima, adicionando nela carne moída, cenoura, cebola e outros vegetais carne moída. Ele havia prometido queijo, mas basicamente ele picotou um centésimo de um polenguinho e julgou que era o suficiente. E um ovo.

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Zanzibar Pizza
Zanzibar Pizza

A chapa já quente é agraciada com uma gota única de óleo. A “pizza” é levemente assada ali. Sua borda é jogada para o centro, para evitar que qualquer recheio escapasse. Depois, o cozinheiro vira a pizza e a assa de ponta cabeça. Quando ele julga que o turista já ficou maravilhado o suficiente, ele recolhe a iguaria, e serve em um prato de plástico, com vegetais (alface, tomate e cenoura).

“Quer ketchup?”, pergunta ele, segurando um frasco junto ao prato. “Sim!”, respondi eu, e logo percebendo que eu estava cometendo um crime terrível, adicionando ketchup em uma pizza, mesmo que não seja uma pizza propriamente dita, mas o nome é de pizza, então não; “Não! Não quero!”, completei logo gerando dúvida no olhar do cozinheiro. O nome de “pizza” realmente não condiz com o gosto do prato, já que a massa tem gosto de basicamente nada e o recheio tem gosto do que se espera que cada coisa do recheio tenha o gosto, o que não é ruim considerando o continente presente.

Para acompanhar minha suposta pizza (e porque estava muito quente, tanto o prato quanto o clima), pedi um caldo de cana na barraca da frente. Ao invés da vida fácil dos vendedores de cana nas feiras de São Paulo, o pobre vendedor tanzaniano teve que moer a cana no braço, usando uma máquina que envolvia uma prensa e uma grande roda, que ele girava com esforço evidente, o suor lhe caindo na testa e se misturando ao líquido gerado pela cana moída. Tudo é servido em um copo de vidro; e todos os copos provavelmente são lavados em um mesmo balde usando a mesma água durante toda a noite. Canudos também são oferecidos e provavelmente também são lavados ali mesmo após o uso. Não há muito como errar na produção de caldo de cana, mas o paladar brasileiro me fez sentir falta de um toque de limão. O sal do suor do vendedor dá uma quebrada no doce e agrada até aos paladares mais exigentes.

Caldo de cana tanzaniano
Caldo de cana tanzaniano

Enquanto sentava numa mureta, degustando minha pizza e meu caldo de cana, um outro vendedor chegou. Diz ele que havia me oferecido sucos maravilhosos e inusitados de alguma barraca ali perto e eu havia dito que voltaria lá depois, portanto, ao me encontrar bebendo um caldo de cana concorrente, ele caiu em uma mini-depressão, me encarando com o olhar cansado e abatido, de quem descobre que sua namorada o estava traindo enquanto ele corria uma maratona em um dia dos namorados. “Eu vou lá depois. Aonde é?”, perguntei eu, tentando evitar que o vendedor chorasse. “Eu te levo lá. Vem comigo.”, respondeu ele. “Estou só terminando de comer e já vou.”, respondi levantando a caneca de vidro, deixando claro que eu não podia sair dali porque tinha que devolver minha caneca. “Tudo bem. Eu volto em 5 minutos então e te levo lá”. Acompanhei com o olhar ele caminhando até perdê-lo de vista. Depois, engoli o resto de meu lanche e de meu caldo de cana e saí correndo dali antes que ele voltasse.

Além de um belo jantar, ensinei a um vendedor africano muçulmano que não se deve confiar em ninguém. Muito menos em turistas brancos.

 

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Roteiro da baixa gastronomia de São Paulo #3
Roteiro da baixa gastronomia de São Paulo #2
Roteiro da baixa gastronomia de São Paulo #1

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