Leia a primeira parte aqui!
A minha primeira experiência tentando pegar uma carona se deu em Portugal, em 2011. Com a idéia de visitar a cidade de Fátima, fiz o que qualquer turista desavisado faria em meu lugar: peguei um trem até Fátima. O problema é que a estação de trem fica a aproximadamente 20km da dita cidade e perdida no meio do nada (antes de chacotear os lusitanos, lembre-mo-nos que a estação Consolação fica na Paulista e a estação Paulista fica na Consolação).
Sem dinheiro e sem ânimo, permaneci com meu dedão esticado sob um sol relativamente abusivo na beira da estrada deserta que levava até a estação. Felizmente, não fiquei lá por muito tempo e fui logo levado por um português camarada a Ourém, que não era o destino final, mas ao menos tinham ônibus para completar o trajeto desejado.
A minha maior e melhor experiência de caronas, entretanto, foi (quase) completamente planejada.
Na época que eu morava em Paris, tive a idéia de visitar uma grande amiga em Rennes, a aproximadamente 340km de distância. Dinheiro, como sempre, era um grande problema e, tendo voltado de uma viagem pelo leste europeu aonde conheci uma garota que estava viajando de carona desde a Ucrânia, simplesmente pensei que, se uma alemãzinha adorável consegue viajar de carona na Romênia, eu também devo conseguir na França.
Entrei então no HitchWiki – http://hitchwiki.org/ – e procurei a melhor opção para ir de Paris ao oeste francês. Escolhi ir a um ponto que já me deixava na estrada a caminho de Le Mans, pegando um trem a Massy Palaiseau (lê-se Mací Paláiçô) e depois um ônibus (equivalente aos nossos ônibus intermunicipais) até Briis-sous-Forges (lê-se do jeito que você quiser, desde que corte pelo menos três vogais), aonde eu teria que andar por aproximadamente 3km até o posto de gasolina de estrada mais próximo.
O caminho previa que eu chegaria no posto de gasolina (ou aire de Service) por trás, por dentro da cidade. E foi o que eu fiz. O problema foi, assim que chegar lá, descobrir que havia um muro impedindo a entrada de quem vinha pela rua de trás. Decidi atravessar pela lateral do posto, no que parecia uma plantação de morangos. Assim que comecei a andar pela terra, encostado ao muro do posto, me arrependi. Pelo que eu podia ver, depois do muro, ainda havia um alambrado cercando toda a lateral da aire de service até a rodovia – provavelmente para impedir caroneiros de entrarem ali. Desanimado e destemido, fui beirando o alambrado, com a idéia de chegar à rodovia e entrar por lá mesmo.
Devia ter chovido na noite anterior. Chovido bastante. E chovido na noite anterior àquela também. E em todas as noites anteriores no período de um mês. A cada passo dado, meu pé afundava numa lama chata, que quase me prendia. Foi com muita dificuldade que cheguei à rodovia para descobrir que o alambrado continuava, cercando provavelmente toda a plantação. Minha primeira experiência de carona planejada começava então comigo preso numa plantação de morangos, chafurdado até os tornozelos na lama, ao lado do posto de gasolina aonde eu deveria estar e sem perspectiva nenhuma de chegar em lugar nenhum naquele dia.
Voltei pelo mesmo caminho que fui, até um ponto onde o alambrado era um pouco mais baixo. Lembrei da minha época de buscar bola nos quintais do vizinho e simplesmente pulei o alambrado para o posto, jogando antes minha mochila. Meus pés e a barra da minha calça eram lama pura. Tirei o tênis, tirei o par de meias novas (tinha acabado de comprá-la devido a um pequeno recesso de meias que estava enfrentando), joguei as meias fora, limpei meus pés do jeito que pude, joguei um pouco de água na barra da calça e limpei o tênis com duas folhas de caderno, que levava comigo para anotar os destinos que eu estaria implorando para ser levado.
Acreditei que meus pés já estavam limpos o suficiente para não emporcalhar o carro da boa alma que me daria carona. A primeira carona foi até rápida: apenas meia hora de espera – mal deu pra terminar o lanche de queijo com chouriço que titia tinha me dado para comer na minha viagem (que acho que ela acreditava que seria de trem).
A carona era com um técnico de ar-condicionados que trabalhava em Paris e morava na Bretagne. O rapaz foi muito simpático e contou um pouco de como ele fazia aquele caminho toda a semana.
Um pouco sobre a etiqueta caroneira: Eu tenho a mania de dormir em absolutamente tudo o que se move: trens, ônibus, carros, garotas, aviões… Porém, acredito que é de bom tom, como sendo um passageiro convidado de uma nobre alma caridosa, manter uma conversa ou qualquer distração para entreter o motorista no caminho.
Um pouco sobre o meu francês: Ele não é muito bom. Eu tenho uma boa compreensão escrita e uma compreensão auditiva regular. Eu sempre me enrolei para falar, mas foi nessa viagem que eu percebi que consigo sobreviver com o pouco que sei. De todas as caronas que eu peguei, apenas uma falava inglês. Com todas eu tive que manter a conversa fluindo em meu francês sofrível, incluindo o primeiro contato, aonde eu indicava encarecidamente o local aonde eu queria ser deixado.
A primeira carona me levou pela A10 e A11 até metade do caminho. Pouco antes de se desviar da rota para Rennes, ele me deixou em uma outra aire de service, onde peguei minha segunda carona, com um professor de sociologia da Sobborne em seu moderníssimo carro. O professor foi a única carona que falava inglês, mas queria ajudar com o aprendizado do meu francês – que ele considerou bom – então tivemos uma agradabilíssima conversa em francês até chegarmos ao anel externo de Rennes, onde o absurdamente simpático professor me deixou com instruções até de onde eu devia pegar o ônibus para o centro.
Passei três dias em Rennes. Lavei as calças na pia do banheiro da casa da Clícia, a amiga que fui visitar. A verdade é que, apesar da lama inicial, foi uma viagem até fácil, comparada com a volta.
Seguindo ainda as instruções do HitchWiki, para o caminho de volta, peguei um ônibus até uma das saídas de Rennes. Levava comigo uma placa indicando a direção de Le Mans, que ficava a metade do caminho de Paris. O ponto indicado pelo site era logo antes da entrada da N136, uma estrada que ia dar na A11, que me levaria até Paris.
Quando vi o adesivo de Hitchhiking colado numa das placas de trânsito no canteiro aonde estava, acreditei que estivesse no lugar certo, e que não seria difícil pegar carona. Levei, porém, uma hora esperando, até que fui recebido por um velho senhor em seu velho carro, este que prometeu me deixar em um ponto muito melhor a caminho de Le Mans. O velho contou que, quando era jovem, vivia muito da benevolência de quem dava caronas e, por isso, ajudava sempre que possível aos pobres desalmados com dedões levantados na beira da estrada. Contou também que em sua juventude trabalhou como militar francês atuando na Guiana Francesa. Poucas dezenas de quilômetros à frente, ele parou o carro no acostamento e avisou em um francês que eu não podia acreditar que era aquilo mesmo “Pode descer aqui. Não deve demorar para sua próxima carona.” e partiu com o carro.
Não tenho muita experiência em caronas, mas acredito que carros passando a 120km/h não vão se importar muito para parar para um pobre brasileiro que ainda tinha resquícios de lama nas barras das calças. Prendi então meu caderno na mochila, de forma que quem me visse andando, pudesse ler “to Le Mans, svp” em minhas costas e comecei a andar com a esperança de encontrar uma aire de service mais à frente. Tudo o que encontrei, porém, foi uma placa dizendo que a próxima aire de service estaria a 40km de distância.
Andei então uns 5km, até encontrar uma outra saída que dava na rodovia. Analisei as minhas chances e concluí que ali era o melhor lugar – e talvez o único – onde carros passariam devagar o suficiente para se compadecer de minha situação. De fato, não levou mais de meia hora naquele ponto para que um tunísio parasse o carro e perguntasse aonde eu iria. “Quelque chose“, respondi eu em francês macarrônico, meio desanimado, dando pretextos para o cidadão me levar para a Tunísia e me vender como escravo. Expliquei que queria ir para Paris ou Le Mans, mas “sério, se você me deixar na próxima aire de service, já vai ter me ajudado muito!”, e foi o que o rapaz fez.
Eu já tinha saído há mais de três horas de Rennes e não tinha chegado nem na metade do caminho para Le Mans – que é metade do caminho para Paris. Ainda passei mais uma hora esperando outra carona no posto onde estava, vendo pessoas pararem seus carros, fazerem compras na loja de conveniência, saírem e me ignorarem. Uma mulher loira parou o carro para suas filhas (também loiras) darem voltas ali na aire com um belo cachorro labrador. As meninas deviam ter algo em torno de 11 e 16 anos. Qual a chance de três garotas sozinhas darem carona para um homem com cara de mendigo, pensava eu. Mas elas parecem ser menos preconceituosas do que eu, pois pararam o carro perto de mim e perguntaram aonde eu estava indo. “Paris”, respondi, “mas se você puder me deixar em Le Mans, já seria muito bom!”.
Assim eu tomei a terceira carona do dia. As três meninas foram muito simpáticas – principalmente a mãe -, e muito pacientes para mantermos uma conversa decente, e é uma pena eu não ter anotado o nome de nenhuma delas. Em compensação, decorei o nome do cachorro, que se chamava Biscuit e parecia agitado com uma presença estranha dentro do carro. Chegando em Le Mans, ela me falou que ia me deixar em um lugar muito bom para uma próxima carona para Paris, e, mesmo com a péssima experiência da última vez que tinham me prometido aquilo ainda naquele dia, aquelas meninas ganharam mesmo minha confiança.
Fui deixado perto de uma praça de pedágio. As meninas saíram para dar outra volta com o cachorro e nos despedimos. E o lugar se mostrou realmente muito bom e em cerca de 10 minutos eu já estava dentro de outro carro, finalmente a caminho de Paris. Pedágios são ótimos pontos caroneiros, já que os carros são obrigados a diminuírem a velocidade e fica meio impossível não lhe verem. O único porém foi um guarda rodoviário que parou e me instruiu que ele não podia fazer nada se eu tentasse pegar carona antes do pedágio, mas poderia me impedir de pegar carona depois dele.
A última carona foi com uma família de marroquinos em um grande carro. Pai, mãe e dois filhos pequenos (provavelmente entre 4 e 9 anos), que voltavam de alguma viagem e iam direto para Paris. “Vou para Rosny-sous-Bois“, disse, que era aonde mora minha tia. Eles falaram que isso era ótimo, porque o caminho que eles tomariam passaria por lá, e eu fiquei despreocupado – tanto que quase dormi. Já estava cansado de tentar manter conversas em francês e não conseguia achar um assunto que encaixasse com aquela família, então segui a maior parte da longa viagem em silêncio, tentando entender o francês que eles de vez em quando falavam entre eles – e que muitas vezes eu tinha certeza que era, na verdade, árabe.
Assim foi o caminho direto para Paris. Como último pequeno incidente de viagem, ao invés de Rosny-sous-Bois, eles entenderam Aulnay-sous-Bois, e me deixaram alguns quilômetros mais ao norte do que eu esperava ficar. Mas já estava numa cidade grande e conhecida e já tinha ônibus de linha, afinal, uma das coisas que eu ainda não fiz foi pegar carona com desconhecidos dentro de uma cidade grande.
Mas qualquer dia ainda vou ali na Marginal Tietê, com uma placa dizendo “Itaim” e com um dedão levantado. E depois eu conto pra vocês.
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Para ler:
On the road (Jack Kerouac)