Dose

– Você tá tumultuando aqui e não pode ficar aqui não!

– Hein?

– Eu disse que você tá tumultuando aqui e não pode ficar aqui não!

– Meu senhor, você sabe com quem você tá falando?

– Um espertalhão, é?

– Eu sou o garçom, porra!

– Ah… Nesse caso me dá mais uma cerveja!

Aquilo já era demais. Mathias não era pago praquilo. Ele olhou ao seu redor pelo bar onde trabalhou nos últimos dois anos. O cenário era de caos. Aquilo lhe dava asco. Sorriu ao pensar que caos e asco eram anagramas. Começou a pensar em outros anagramas possíveis daquelas letras… “caso”, “soca”, “ocas”… Talvez ele tivesse encontrado a palavra com o maior número de anagramas do mundo.

– Ô campeão! Uma cerveja! – o chamado lhe acordou de seu devaneio linguístico. Acidentalmente ele olhou para o cliente. Um erro. Mathias gostava de passar pelas mesas com o olhar fixo no horizonte, ignorando todos os chamados, anotando mentalmente as alcunhas pelas quais era chamado. “chefia”, “bigode”, “amizade”, “diretoria”, “barão”, “Isvêncio”, “malandragem”, “Mathias”. Ele odiava quando os clientes o chamavam pelo nome: era mais difícil ignorar.

– Chefia! Campeão!! Cervejaaaa!!! – Mathias começou a divagar se não estava já divagando demais quando percebeu que aquilo ia levar a um ciclo terrível, então respondeu:

– Senhor, o senhor não acha que já bebeu demais não?

– Acho sim, obrigado por perguntar! Pode me dar mais uma cerveja, por favor?

– Olha, talvez não seja apropriado… ei! ei! Sai daí!

A conversa teve que ser interrompida para que Mathias interrompesse um bêbado que se debruçava por cima do balcão e bebia diretamente da torneira da choppeira. Depois tratou de expulsar um senhor idoso que estava na adega, tratando de servir-se de uma dose de tequila por conta própria, derrubando sal em absolutamente todo lugar. A situação estava incontrolável. Encontrou o outro garçom, Johnny, caído ao fundo da cozinha ainda com sua garrafa de Natasha em mãos. Um anão de terno estava amarrado em cima da geladeira enquanto uma mesa com voluptuosas garotas e admiráveis gordões já estavam vermelhos de tanto rir.

Era demais. Mathias tirou seu avental e o deu a um magrelo que estudava o funcionamento de um abridor de garrafas “Pega. Você é o garçom agora.” Dirigiu-se aos fundos, entrou na sala do dono sem bater. A sala não passava de uma despensa, com a parede repleta de pôsters centrais de revistas masculinas e calendários pregados, um por cima do outro desde 1936. O dono jazia dormindo em sua cadeira, ao lado de uma fétida mesa em decomposição sobre a qual descansavam duas garrafas de uísque quase vazias. Socou a mesa e gritou furioso:

– Chega! Não aguento mais gente bêbada! Eu sou um trabalhador saudável, faço exercícios todas as manhãs. Corro. Não tomo nem refrigerante. Minha profissão vai contra tudo aquilo que eu tenho como princípios. Não aguento mais servir as pessoas para que elas se embebedem. Estou me demitindo. – O dono não acordou.

Saiu do bar pensando em chegar em casa, tomar um banho e preparar para si mesmo o melhor omelete de queijo que pudesse. Era uma celebração. Sem mais delinqüentes alcóolatras durante a noite!

…O omelete de queijo, entretanto, nunca chegou a ser preparado. Atravessando a rua ao sair do bar, Mathias foi atropelado e veio a falecer algumas horas depois no hospital. De acordo com a perícia, o motorista estava embriagado.

Xeque mate