Foram seis divertidos meses que eu passei em Portugal. Quando eu parti da península Ibérica, no começo de setembro, com a idéia de fazer um mochilão pela Europa com amigos, eu já não tinha pretensão nenhuma de voltar. Assim, eu adquiri um problema: eu ia terminar a viagem em algum lugar aleatório e terrivelmente longe de onde ela começou. E, sendo uma viagem com gente jovem, forte e maluca, não fazia sentido carregar mais pertences do que aquilo que coubesse em meu mochilão de viagem. Então, coloquei em minha outra mala todos os pertences que eu achei que não precisaria (calças de neve, grossas blusas de frio, uma tablet de desenho, tomadas extras para o falecido macbook, alguns livros que eu ainda não li e quase todas as roupas sociais que eu tinha, exceto por uma camisa que deixei na mochila para se surgisse uma oportunidade de emprego no meio da viagem), com os planos de despachar essa mala para algum lugar que fosse mais próximo do meu futuro desconhecido destino.
Entre as alternativas que eu tinha, envolviam uma tia em Paris, um amigo na Bélgica e um amigo na República Tcheca. Meus planos eram mais obscuros do que programação do SBT, mas eu tinha uma forte propensão para ir à capital francesa com o objetivo de aprender francês e comer baguete. Lá se foi então minha mala conhecer a França. E lá fui eu conhecer o resto da Europa…
Então, Londres
O relógio da torre marcava 5h40 quando eu saí da casa de meus tios em Hengelo, na Holanda. Era uma segunda-feira, 10 de outubro de 2011 e eu estava cansado. Nos trinta dias que se passaram desde minha partida de Portugal, eu havia visitado cinco países e uma oktoberfest com três grandes amigos que vieram do Brasil (Andrey, Gabi e Ormeni, SEUS LINDOS!), numa eurotrip mais divertida do que falar mal de ex. Quatro dias antes eu tinha me despedido deles em Amsterdam e, sem outro destino, parti em direção à casa de meus tios, que estavam se mudando na altura para a Holanda para viver lá a trabalho por um tempo.
Estava realmente muito frio. Uma garoa fina caía, mas eu não achei que fosse o suficiente para abrir meu recém adquirido guarda-chuva. Havia comprado-o um dia antes: eu sabia que ir para Londres sem guarda-chuva é como ir para o Rio de Janeiro sem seguro de vida. Além de minha ferramenta proteccional contra água caída do céu, eu usava duas camisas, uma calça jeans absolutamente nova (uma vez que minha velha calça havia cedido por completo ao furo que já tomava conta da região glútea) e o mesmo par de botas e a mesmíssima blusa que eu usava quando cheguei em Lisboa, exatos sete meses antes.
Londres, surpreendentemente, estava com um clima bem mais agradável. Nos primeiros dias que fiquei por lá, cheguei até a ver o céu azul ensolarado, coisa que eu não achei que fosse possível na Inglaterra. Minha amiga com quem passei os dez primeiros dias nem precisou usar o guarda-chuva anti-tufão que ela havia comprado. Esse tempo com a Vanessa em Londres, aliás, foi maravilhoso em todos os aspectos. Entre estátuas do Duque de Wellington, discussões monstruosas, peças de teatro prolixas, guias turistícas psicopatas, sapateadores montando cubo mágico no metrô, tartarugas, buscas por lixeiras cantantes e praguejadores de parques, silly walkings, placas apontando diversão e chás da tarde, aproveitei esse período inicial para conhecer a cidade e gastar o resto de minhas economias.
Na noite de 20 de outubro, Vanessa voltou ao Brasil. E lá estava eu no aeroporto de Heathrow, novamente sozinho, sem trabalho e sem lugar para dormir. Era hora de (re)começar de novo.
Reset
Saindo do aeroporto, fui me encontrar com Pedro, um amigo brasileiro que eu conheci em Marrocos seis meses antes. Ele estava em Londres estudando e também não tinha aonde dormir. Naquela noite, ficamos em um miserável hostel perto da Russel Square.
Londres é cara. Por isso, na manhã seguinte, já fui atrás de um quarto para morar e, na próxima noite, já estava dormindo no meu saco de dormir debaixo de um teto em um quarto alugado em Hackney, um lugar tão suburbano de Londres que uma noite eu olhei pela janela da cozinha e vi uma raposa no quintal da frente – o que me deixou com muito medo de correr pelos dois parques que ficam a 300m de lá (ao menos depois que escurece, o que costuma acontecer lá pelas 16h). A casa ainda é compartilhada com italianos e espanhóis que não falam muito bem inglês, o que me obriga a usar meus esparsos conhecimentos da língua italiana aprendidos nos meus tempos áureos lisboetas.
A semana seguinte foi péssima. Eu estava muito cansado – tanto fisicamente quanto psicologicamente – e teria que começar tudo de novo: Arrumar a casa, procurar emprego, juntar dinheiro. Eu já tinha passado por essa situação em Portugal meses antes, então eu já sabia quais erros não cometer. Mas lá, tudo ainda era novo e empolgante e eu não estava tão desgastado. Minha situação financeira também era precária, o que me deixava meio desesperado por um trabalho. Por sorte, um amigo no Brasil me passou um trabalho de freelance que pôde me manter ocupado enquanto eu não tinha nada fixo.
A área de programação é boa e logo diversas propostas e entrevistas começaram a aparecer. Toda a negociação com as empresas e acerto de entrevistas funciona na base de agências de headhunters que eu realmente não tenho a menor idéia de como funcionam. Na situação que eu estava, sabia que aceitaria a primeira proposta minimamente decente que me fizessem, e assim o fiz. Na minha segunda semana em Londres, comecei a trabalhar em um site de pôker e casino online. Parecia, entretanto, que eles sabiam que eu precisava de qualquer trabalho e me ofereceram um salário totalmente não condizente com o cargo e com minhas (modéstia à parte) habilidades em programação; salário este que eu aceitei de muita má vontade. A despeito do ordenado ser uma bosta, parecia o tipo de trabalho que eu ia adorar fazer: A empresa é jovem e, por razões de sua natureza, tem diversas máquinas de caça-níquel e mesas de jogos de cartas espalhadas, onde os funcionários trabalham em sistemas de reconhecimento de cartas por câmeras e outras brincadeiras que deveriam ser divertidas. Porém é também extremamente desorganizada e desnecessariamente rígida demais para o meu gosto (sem contar que nunca tem ninguém jogando nada). Os horários são bem rigorosos – incluindo o horário de almoço e os intervalos no meio da tarde – e ao lado da porta de entrada há um ríspido aviso alertando que o “horário de entrada é às 9h e qualquer um que entre às 9h05 será reportado como ‘atrasado’”. É lógico que eu já devo ter me atrasado mais do que o Adriano nos seus tempos de Flamengo. O indiano que gerencia os programadores também não é propriamente simpático. Quando precisei me ausentar por uma tarde (para ir em outra entrevista), ele foi seco e usou argumentos como “Você sabe quantas pessoas queriam essa vaga que você está ocupando?”… Bem, eu não quero; então pretendo ficar nesse trabalho somente enquanto procuro algo mais lucrativo e divertido. Ao menos eu posso dizer que já ganhei dinheiro com pôker.
Entrevistas e vestimentas inadequadas
Para conseguir o trabalho na malfadada empresa supracitada, eu fui chamado para fazer um teste que consistia na elaboração de um simples joguinho online em JavaScript e PHP. Alguns processos seletivos entretanto, se baseiam em diversas etapas de testes técnicos e entrevistas. Apesar do curto dinheiro, quando comecei a passar para as próximas etapas de algum processo, fui obrigado a comprar uma nova camisa. Até então, eu ia em todas as entrevistas com a minha já emporcalhada camisa social amarela que viajou comigo por cinco países no fundo de uma maltratada mochila. Isso sem contar a outrora nova e atualmente desgastada calça jeans que completa hoje 30 dias de uso consecutivos. Algumas entrevistas até exigiam um código de vestimenta mais adequado, além de meus padrões costumeiros. Mas minha atual situação financeira não permite a compra de nada mais requintado no momento.
Em determinada entrevista, fui recomendado pelo headhunter a comparecer de terno. “Não tenho um terno”, respondi. “Não deve ser problema. Tente ao menos usar uma gravata.”. Na manhã da entrevista, cheguei mais cedo nas imediações do escritório, com o intuito de comprar o inútil adorno social. Pobre tolo. Mal sabia que uma simples gravata custa entre £60 e £90. A mais barata que eu encontrei custava £27, muito além de meu poder aquisitivo no momento e bem acima dos £7 que eu esperava que ela custasse. Às favas com isso. Se Mark Zuckerberg faz reuniões de sandália, eu também posso fazer entrevistas sem gravata e com minha bota de trilha.
Roupas não são caras em Londres. Em lojas populares como a Primark pode-se gastar £5 na compra de uma camisa social semi-transparente e semi-vagabunda, mas para quem é já tá bom.
“O inverno está chegando”, como já diria a família Stark; e o leitor atento deve ter se lembrado que minha mala com roupas de frio se encontra atualmente na França – e eu não tenho muita pretensão de ir pra Paris antes do natal, onde devo passar as festividades atormentando minha tia (eu me auto-convidei mesmo). E assim vou eu, revezando diariamente entre três desgastadas camisas de manga comprida, uma blusa, uma jaqueta de couro, minha surrada blusa que é mais velha do que a Sasha (e só foi levada dentro da mala porque é velha e fofinha o suficiente para também ser usada como travesseiro) e um sobretudo estilosamente mafioso que comprei por 10£ em uma feirinha de rua, quando estava com Vanessa e só para combinar adequadamente com meu chapéu.
Planos
Apesar das coisas aos poucos estarem voltando a uma estabilização, os planos agora apontam para o caminho de volta. Acredito que já cheguei, no mínimo, na metade de minha jornada pela Europa, e agora minhas atenções se voltam para riscar da minha lista os lugares que ainda quero conhecer e as coisas que eu ainda quero fazer antes de regressar. Para isso, entretanto, eu preciso de dinheiro. E assim eu vou conciliando o trabalho, as entrevistas e os projetos freelas que vou conseguindo no Brasil.
Cheia de altos e baixos, minha história por aqui segue, sempre com novos capítulos, cenários e personagens. Alternando momentos maravilhosos com fases muito difíceis, mas nunca ficando entediante.
A propósito, mãe: estou vivo!
(e não estou passando fome, nem frio e nem precisando de dinheiro; isto é só literatura)