Por que rolamos atrás do queijo?

eu (destacado), no começo da corrida atrás do queijo rolante
eu (destacado), no começo da corrida atrás do queijo rolante

É uma tarde de segunda-feira nublada de maio em Cooper’s Hill, Gloucestershire, um condado no sudoeste da Inglaterra. Quase quatro quilos de queijo quicam alegremente na grama, morro abaixo. Uma horda de corpos humanos caem atrás dele, como bonecos de pano, deixando ombros deslocados, pernas quebradas e costelas trincadas. As pessoas só conseguem parar de rolar realmente no final da ladeira, aonde um grupo de jogadores de rugby voluntários seguram os competidores e começam a cuidar dos ferimentos mais graves. Aquele que chegar primeiro é o grande vencedor e tem para si o queijo da vitória.

A Cheese-Rolling Race, ou Corrida do Queijo, é um evento anual e histórico. A tradição é centenária e ninguém sabe dizer ao certo quando começou. Acredita-se que o evento era parte das celebrações pelo início da Primavera. Relatos sugerem que rolar coisas de um barranco era um hábito pagão e que pessoas correm atrás de queijos pelo menos desde o século XV.

De 1941 a 1954, devido ao racionamento de comida por conta da Segunda Guerra Mundial, os organizadores tiveram que construir um queijo de madeira com um pequeno pedaço de queijo de verdade dentro – a única permissão concedida na época pelo Ministério da Comida para a corrida. Quando queijo de verdade pôde finalmente voltar a ser usado, um queijo especial de 18 quilos foi especialmente produzido para o evento.

A tradição continuou ano após ano, sendo organizado por voluntários da região e voltado para os próprios moradores das redondezas. Até 2009, quando mais de 15000 pessoas compareceram para o evento. Questões de saúde e segurança passaram a preocupar as autoridades locais que decidiram cancelar oficialmente o evento de 2010.

A comunidade entusiasta do esporte ficou desapontada e indignada. A corrida estava se tornando uma das grandes atrações turísticas da região e o cancelamento foi uma decepção geral. Entretanto, como a história constantemente demonstra, não é possível conter a estupidez humana e é impossível evitar que aficcionados subam uma colina, atirem um queijo ladeira abaixo e saiam rolando atrás dele. E foi exatamente isso que aconteceu: sem o evento oficial, os praticantes se organizaram extra-oficialmente e continuaram com a tradição normalmente.

Os organizadores não-oficiais do evento, entretanto, alegam sofrer diversas intervenções e ameaças da polícia local. Cartas foram enviadas ao responsável pelo website e até ao fabricante do queijo que é rolado na corrida, destacando que eles poderiam ser legalmente responsáveis por eventuais incidentes que venham a ocorrer durante as corridas. Aos participantes, a polícia pede todos os anos, semanas antes da corrida, que tenham bom-senso e cautela, e considerem a própria segurança pessoal antes de se arriscar morro abaixo atrás de um queijo.

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Cheese Rolling is a dangerous activity for both participants and spectators. The cheese roll is not managed. You are strongly advised not to attend.

Mas ano após ano, o queijo segue sendo rolado. É um típico Double Gloucester, um queijo semi-duro fornecido pela mesma fabricante desde 1988: Diana Smart, de 88 anos, que usa leite de sua horda de vacas Brown Swiss, Holstein e Gloucester. Ela é a única pessoa em Gloucester que ainda faz queijo usando os métodos tradicionais e, por isso, em 2013 recebeu a visita de três policiais que ameaçadoramente recomendaram a ela que parasse de prover o latícinio necessário para a corrida. Ela segue desobedecendo as recomendações das autoridades.

Assim, na última segunda-feira de maio de 2015, um público estimado de 4000 pessoas se reuniu em torno do barranco de Cooper’s Hill para assistir a corrida. As condições climáticas eram ideais: a chuva dos dias anteriores amaciou o solo, mas não chovia. A polícia fechou diversas ruas ao redor do campo e exibiu diversos avisos na entrada alertando sobre os perigos do evento para espectadores e corredores. A pista principal da prova foi cuidadosamente inspecionada durante a última semana pelos organizadores, que removeram cercas, pedras, troncos e outros objetos perigosos, tentando prevenir qualquer acidente mais grave durante a corrida. Quando cheguei, o público já estava acomodado ao redor do barranco, ansiosos para o início da prova.

São quatro baterias principais: três masculinas e uma feminina – o que demonstra que há uma quantidade pelo menos três vezes maior do homens estúpidos do que de mulheres. Cerca de vinte pessoas correm cada bateria, sem qualquer inscrição prévia, bastando comparecer ao local e conseguir entrar na zona de largada, que tem seu acesso limitado pelos organizadores voluntários do evento. Para juntar coragem e aprimorar a destreza, diversas pessoas preferem se embriagar antes da corrida e latas e garrafas de bebidas alcóolicas se amontoam no topo do morro, junto com alguns participantes que mal conseguem ficar de pé, mesmo na grama plana.

Eu consegui lugar na segunda corrida do dia e me posicionei com cuidado ao lado de um francês e um homem vestido de banana. Do grid de largada é possível ter uma noção da inclinação que os competidores enfrentam: em sua parte mais íngreme, o barranco atinge um ângulo de 70º, aplanando levemente a uma média de 50º de inclinação no meio dos cerca de 200m a serem percorridos.

O mestre de cerimônias, um velho senhor usando um terno branco e uma cartola com fitas vermelhas e azuis nos dá as instruções básicas: “Eu grito ‘um’ para vocês se prepararem, ‘dois’ para ficarem a postos, ‘três’ para soltarem o queijo e vocês só largam no ‘quatro’! Se alguém largar antes, não ganha o queijo!”, alerta ele, muito sobriamente, deixando claro que é uma prova para ser levada a sério. O competidor também ganha se conseguir capturar o queijo no meio do caminho – coisa que nunca aconteceu, uma vez que sua velocidade pode ultrapassar os 100km/h.

Em outra seqüência, já é possível me ver rolando gloriosamente montanha abaixo
Em outra seqüência, já é possível me ver rolando gloriosamente montanha abaixo

“O segredo é tentar ficar de pé o máximo possível”, dizem vários dos vencedores dos anos anteriores. Mas a tarefa é mais difícil do que parece. Quando foi dada a largada, eu saí correndo junto com todos ao meu redor. Consegui dar dois passos antes de ver o primeiro competidor caindo ao meu lado. Não conseguia pensar no queijo, só em ficar de pé. Dei mais alguns passos e, sem apoio por conta da inclinação, caí de joelhos e escorreguei morro abaixo. Senti minhas costas irem pra trás, numa posição imensamente desconfortável e tentei me jogar pra frente, num movimento burro. Caí de ombros e comecei a rolar, dando cambalhotas em uma velocidade imensa, o chão me empurrando de volta para o ar, aonde eu parecia flutuar durante segundos antes de me encontrar de novo com a grama macia. O mundo girava ao meu redor conforme eu ia rolando incontrolavelmente, como um gato em uma máquina de lavar. Não havia nada em que me segurar e eu conseguia ouvir os gritos do público, mas não sabia se eram por minha causa ou por conta das quedas dos outros competidores ao meu redor.

Em um momento a inclinação do morro abrandou levemente. Eu me segurei e me levantei com dificuldade, mas não consegui ficar de pé por muito tempo: Tentei correr, mas estava completamente tonto de tanto rolar morro abaixo e, depois de três passos, saí rolando de novo, desta vez com meu corpo completamente esticado, por diversos metros, até alguém me segurar.

Eu, comemorando os ossos inteiros pós-prova
Eu, comemorando os ossos inteiros pós-prova

Ao final da ladeira, os voluntários ficam estrategicamente posicionados a fim de conter os corredores que, descendo em altíssima velocidade, não conseguem parar. Foram dois jogadores de rugby ingleses que me seguraram, me colocaram de pé rapidamente e bradaram para que eu saísse do caminho porque haviam mais competidores descontrolados chegando. Ainda completamente tonto eu dei alguns passos para frente e fiquei um tempo parado, recuperando meu equilíbrio, enquanto via os outros competidores caídos ao meu redor. O vencedor estava sentado sendo amparado por uma equipe de paramédicos – voluntários do St. John Ambulance cuidam dos feridos no evento. Em 1997, recorde de registros, 37 pessoas foram atendidas, incluindo sete espectadores. Em 1990, uma senhora de 59 anos desmaiou após ser atingida na cabeça por um queijo.

Na corrida deste ano, além da suspeita de um tornozelo quebrado, não houveram quaisquer registros de ferimentos sérios. Apesar de não ter conseguido ganhar o queijo, eu terminei a prova com nada além de um braço arranhado e um graveto espetado na anca.

O grande vencedor do dia foi Chris Anderson, morador da região, que venceu a primeira corrida, subiu de novo e venceu a quarta corrida. Nos últimos 11 anos ele já ganhou 15 queijos. Historicamente, o maior vencedor foi Stephen Gyde, que competiu entre 1978 e 2006, levando pra casa 21 queijos. Porém, com Stephen já aposentado, Chris tem tudo para nos próximos anos ser o maior vencedor de queijos da Cheese-Rolling.

Isso se a polícia e a prefeitura não tomarem mais medidas para impedir o evento. A organização garante que o histórico evento não acabará, afinal, não há leis impedindo pessoas de descer um barranco atrás de um queijo. Ainda.