O genocídio que aconteceu em Ruanda no recentíssimo ano de 1994 foi sem dúvida uma das maiores tragédias da humanidade e é a prova definitiva de como foi catastrófica a colonização belga no continente africano. Até hoje, 20 anos depois, não se tem uma idéia precisa do número de mortos, mas a estimativa é entre 500 mil e 1 milhão de vítimas, sendo que o valor mais usado pelos livros é de 800 mil. É um número assustador, podendo ser comparado com o holocausto que ocorreu durante a Segunda Guerra, porém com alguns agravantes: Hitler precisou de seis anos para matar 6 milhões de judeus, o que dá uma média mensal de 83 mil mortes por mês, com o uso de eficientes máquinas de assassinato em massa, como câmaras de gás; o massacre de Ruanda foi três vezes mais rápido e feito à base de armas brutais e rudimentares, como machadinhas e facões.
A história da colonização de Ruanda começa com os alemães, em 1890. Com a derrota germânica na Primeira Guerra Mundial, o território passou para controle dos belgas, que usaram a divisão racial ruandesa para manter um melhor domínio sobre seu povo. Uma divisão histórica entre Hutus e Tutsis sempre marcou Ruanda; porém para um estrangeiro, é dificílimo fazer essa diferenciação: teoricamente os tutsis são ligeiramente mais altos, ligeiramente mais magros, ligeiramente mais claros, de narizes mais finos e testas maiores. Os belgas terceirizaram o controle do país ao povo Tutsi, que, na época, correspondia a 10% da população. A dificuldade de diferenciar os Tutsi dos Hutus foi sanada como uma fórmula elitistamente simples: quem tivesse mais de dez cabeças de gado era um Tutsi. Ruanda foi inicialmente marcada por um governo tendencioso, em que Tutsis tinham educação e postos de comando privilegiados.
Na década de 60, com a independência de Ruanda, os Hutus chegaram ao poder, começando uma revolução. Ganhou força a ideologia do “Poder Hutu”, que culpava os Tutsis pelos problemas econômicos e desemprego do país, mais ou menos como aconteceu com os judeus na Alemanha da década de 30. Discretamente, Tutsis começaram a ser achincalhados e assassinados e muitos se exilaram nos países vizinhos, como Uganda, Kenya e Tanzânia.
No começo da década de 90, os Tutsis exilados começaram uma reaproximação com sua terra natal, tentando realizar o desejo de voltar ao país. Juvenal Habyarimana, presidente da época, ajudou na reaproximação, assinando um acordo de paz com rebeldes Tutsis, com a criação de um governo de união nacional, que jamais seria implementado por conta de uma tragédia: em abril de 1994, o avião de Habyarimana foi abatido quando se aproximava do aerporto de Kigali, matando-o. O crime jamais foi esclarecido, mas a hipótese mais aceita é a de que extremistas Hutus descontentes com o acordo de paz com os Tutsis teriam derrubado o avião, de uma forma que a culpa caiu nos Tutsis.
Em questão de poucas horas, bloqueios nas principais vias de Kigali foram estabelecidos e casas de políticos de oposição ao regime foram invadidas. A matança de Tutsis começou. Logo na primeira onda de violência, dez soldados belgas que participavam de uma força de paz da ONU foram assassinados. A solução da ONU na época foi retirar seus membros do país o mais rápido possível, o que, obviamente, só piorou a matança: a única proteção que ainda restava aos civis foi embora e eles estavam completamente abandonados nas mãos de seus assassinos.
Ruanda hoje
“Você sabe o que aconteceu aqui?”, perguntou Remy, garçom do Hotel des Mille Collines, enquanto eu apreciava a vista da piscina – a mesma que no enredo do filme Hotel Ruanda, teve sua água consumida pelos hóspedes. Respondi que sim, que eu havia visto o filme e estudado sobre o genocídio e Remy respondeu que teve seus pais e irmã mortos no massacre, mantendo um tom de voz neutro e livre de emoção, como se essa história já tivesse sido revista tantas vezes que não conseguia mais despertar sentimentos.
As cicatrizes da tragédia ainda estão expostas em todos os lugares e em boa parte dos cidadãos. O memorial do genocídio, localizado próximo ao centro de Kigali serve como uma eterna lembrança dos tempos sombrios pelo qual o país já passou. Nos jardins do memorial, cerca de 250 mil vítimas do genocídio estão enterradas. No interior, estão em exposição pertences de desaparecidos doados pelas famílias, fotos, roupas com os quais foram assassinados e as armas usadas no massacre. Uma ala especial presta uma homenagem às crianças e lá é possível saber que Francine tinha 12 anos, gostava de Fanta laranja e foi morta por um machete e Fillete, de apenas dois anos, gostava de arroz com fritas e foi morta esmagada contra uma parede.
Talvez pela violência exacerbada ou talvez por um sentimento de culpa por ter deixado os civis desprotegidos, Ruanda se tornou queridinha dos serviços humanitários após o reestabelecimento de uma certa ordem. Até hoje é possível ver carros da ONU circulando entre as centenas de motocas pelas limpas ruas de Kigali. Assim que desembarquei no aeroporto, conheci a Irmã Daiana e Irmã Marlene, parte de um grupo de freiras da Paraíba que seguem fazendo um trabalho voluntário com crianças órfãs em Butare, a cerca de 120km da capital ruandesa. Desde 1994, o serviço humanitário global desembarcou em peso no país, atendendo campos de refugiados e tentando reerguer uma nação completamente destruída.
É desse trabalho que surgem histórias como a de Lygia, com a qual tive o prazer de tomar uma brasileiríssima Skol (surpreendentemente popular no país) em um bar de Kigali. Sua mãe havia chegado a Ruanda em 1994, como enfermeira voluntária para trabalhar em um campo de refugiados repleto de crianças recém-órfãs. Logo na primeira semana, ela se apegou à pequena Lygia e decidiu adotá-la. Na semana seguinte, adotou outra criança. E depois outra. E depois outra. No total, Lygia possui 53 irmãos adotivos e sua mãe possui uma creche própria, que continua prestando ajuda, mantida com o auxílio dos próprios irmãos e com ajuda externa de instituições.
Uma tragédia dessas proporções requer não só um cuidado com os sobreviventes, mas também uma reconstrução completa do país. E os ruandeses conseguiram isso, a começar pelo atual líder da nação, Paul Kagame, um dos combatentes Tutsi que batalharam pela reocupação e retorno da ordem ao país. Se tornou Ministro da Defesa desde então e foi nomeado presidente em 2000. Através de eleições, foi eleito pelo povo em 2003 e reeleito (com certa polêmica, onipresente na política africana) em 2010. Apesar de manter a taxa de crescimento do país em cerca de 8%, sua idéia política começa a se voltar ao planejamento de sua própria reeleição, já que seu mandato está previsto para acabar em 2017.
Obviamente que o governo não reergueu o país sozinho. Contou com a participação de cidadãos comuns que trabalharam incansavelmente nas últimas duas décadas para transformar o país em um prodígio africano. Pessoas como Patrick, que me hospedou em sua confortável casa próxima ao centro. Nascido em Burundi, mas com um patriótico espírito ruandês, é filho de uma família de Tutsis que abandonou o país quando os homicídios começaram. Sua família voltou à Ruanda em 1995, quando diversos refugiados retornaram com a intenção de reconstruir sua nação. “Quando eu cheguei, aquele era o prédio mais alto e moderno do país”, disse apontando para um velho mercado de dois andares, enquanto me levava a um tour pelo centro empresarial de Kigali, um lugar que vem prosperando incrivelmente, a julgar pela quantidade de empresas que surgem todos os anos e pelo tamanho dos prédios e centros comerciais que vão sendo construídos.
O turismo também tenta se reerguer no país. Com os confrontos atuais no vizinho Congo, Ruanda têm explorado os turistas que almejam ver gorilas livres na natureza – uma tarefa difícil e um programa caro: são cerca de 800 dólares pelo passeio de um dia, sem garantia que será possível vê-los e sem devolução do dinheiro caso contrário. Guias treinados em rastrear o posicionamento das famílias se comunicam por rádio e levam turistas no meio da floresta, andando por horas atrás dos animais.
Optei pelo turismo mais em conta, passeando pelas ruas de Kigali, acompanhando a rotina de Patrick entre bares e restaurantes típicos. A cidade é dominada por um exército de motocas que se acotovelam (às vezes, literalmente) transportando passageiros desajeitadamente na garupa. O trânsito de Ruanda é uma confusão: as estradas foram construídas pelos belgas, porém os carros eram originalmente dos vizinhos colonizados pelos ingleses. Carros dirigidos pela direita transitando pela esquerda geravam uma confusão única, ocasionando constantes acidentes. Após um estudo para decidir o que saía mais barato: trocar as mãos de todas as vias ou os carros de todos os habitantes, o governo de Ruanda optou pela segunda opção – o que certamente saía mais barato para eles. Isso alimentou um novo negócio: oficinas mecânicas especializadas em trocar o lado do volante em carros. Obviamente que o negócio não era devidamente regulamentado: “Eu lembro que o meu carro foi alterado numa dessas oficinas”, conta Patrick, “e um belo dia eu estava dirigindo-o no meio de uma estrada quando o volante do carro simplesmente saiu na minha mão”.
Programador e empresário, de sorriso fácil e bom de papo, Patrick possuí em sua sala quadros de Muhammad Ali, Elvis Presley e as leis de Murphy emolduradas, ocupando uma parede privilegiada. Fala com orgulho do país “É um lugar maravilhoso de se viver. As ruas são limpas e extremamente seguras. As mais seguras de toda África.”. Talvez pareça exagero, mas a imundície, tão comum em qualquer cidade africana, é quase nula na capital Kigali. Também é fácil se sentir seguro caminhando pelo centro da cidade, com presença constante de uma polícia fortemente armada.
E o confronto racial que marcou a sangrenta história recente do país parece ter se dissipado completamente. Se na época da divisão étnica, a classificação racial era obrigatoriamente impressa nos documentos pessoais, hoje, é considerado extremamente deselegante se referir a qualquer cidadão pela raça ou sequer perguntar se a pessoa é Tutsi ou Hutu. Todos são considerados ruandeses.
Após o massacre, uma comissão internacional se estabeleceu em Arusha, na Tanzânia, com o intuito de julgar todos os crimes cometidos durante o genocídio. Os julgamentos só se encerraram em 2012. Boa parte dos envolvidos foram simplesmente perdoados pelos Tutsis e retornaram ao convívio com a sociedade. Patrick conta a história de uma Tutsi que se casou com um Hutu que foi o responsável por matar toda a família dela. Quando a repórter perguntou a ela como ela podia conviver com isso, ela respondeu o que parece ser o sentimento de todo Tutsi atualmente; nas palavras de Patrick: “A gente tem que esquecer. Se formos buscar vingança, isso nunca vai acabar. Quando o confronto começou, era uma coisa tão antiga que ninguém sabia mais porque estavam brigando. Mas só vamos deixar isso pra trás quando aprendermos a perdoar.”. Impossível não associar o sentimento ruandês com muitos dos confrontos sangrentos que ainda permanecem insolúveis no mundo (Israel e Palestina, estou olhando para vocês).
“Ruanda está crescendo muito. Somos o povo que mais avançou tecnologicamente na África nos últimos dez anos.”, me disse Patrick (sem muito embasamento, verdade seja dita), durante uma visita a uma incubadora de start-ups de tecnologia no centro de Kigali. “E daqui a dez anos, seremos o país mais avançado da África.”, acrescentou ele, com um brilho sonhador nos olhos.
Pelo que fizeram nos últimos vinte anos, eu não duvido.
+ MAIS +
Para ler:
Gostaríamos de informá-lo de que amanhã seremos mortos com nossas famílias, de Philip Gourevitch
Pé na África, de Fábio Zanini
Para assistir:
Hotel Rwanda (2004)
IMDB