Na pior em Londres

Era uma quinta-feira, dia 20 de outubro de 2011. Por volta das 20:30, sentei-me num dos bancos do aeroporto de Heathrow, e comecei a chorar. Eu nunca choro. Nem assistindo a The Green Mile, nem Titanic nem em qualquer filme romântico meloso em que o cachorro morre no final. Só me lembro de ter derramado lágrimas em Forrest Gump e Toy Story 3, e esse fato talvez ilustre melhor a terrível e desesperadora situação que eu me encontrava naquela noite.

Carregava comigo, além da roupa do corpo, uma mochila com duas bermudas, uma dezena de camisas e cuecas, uma camisa social, duas camisas de manga comprida e uma blusa velha. Devido a uma seqüência peculiar de eventos, minha mala que continha todas as roupas de frio, blusas, cachecóis e meias de lã – que seriam suficientes para suportar o gélido vindouro inverno europeu – estava em Paris, inacessível para mim pelos próximos dois meses ainda.

Naquele momento, Londres ainda era uma completa desconhecida; uma incógnita tentadora. E lá estava eu: sem emprego, sem dinheiro, sem roupas apropriadas para o clima, sem casa, sem amigos – exceto por dois (na época) conhecidos que viriam a salvar minha vida algumas vezes depois – e sem ter aonde dormir aquela noite.

Londres: o lugar mais legal do mundo
Londres: o lugar mais legal do mundo

Pedro

Eu ainda estava sentado ali, perdido, sem saber o que fazer, quando Pedro me ligou. Conheci Pedro oito meses antes, na parte marroquina do deserto do Sahara. Paulista, são-paulino, passou um tempo estudando em Madrid e já estava há algum tempo morando, trabalhando e estudando em Londres. Já tinha sido garçom de uma churrascaria típica brasileira e barman de um pub. Naquela mesma quinta-feira ele estava sendo despejado do quarto onde morava e também não tinha aonde dormir aquela noite. Ele providenciou, então, duas reservas de última hora em um hostel relativamente barato (pelos padrões de Londres) e relativamente mequetrefe (pelos padrões de hostel); perto de Russel Square. Pelo menos por aquela noite, era lá que eu ia ficar.

Algumas horas depois, na sala de convivência do hostel, enquanto tomávamos uma New Castle, Pedro me passava todos os contatos que ele tinha com landlords (o equivalente inglês ao proprietário do imóvel) e empresas que providenciam quartos para estudantes e estrangeiros. Há até grupos especializados em residências para brasileiros. No dia seguinte, de manhã, telefonei para quantos consegui, mas o período era de baixa oferta. Muitas pessoas chegam e saem no início e final de anos letivos e, por ser meio de semestre, era difícil achar algum lugar que fosse acessível e imediato.

Na sexta-feira mesmo fui fazer a primeira visita a um quarto que estava disponível na região de Hackney, a nordeste de Londres. Seria aquele quarto que eu adotaria como lar pelo próximo ano e já naquela noite dormiria por lá pela primeira vez.

Hackney

Em 2011, quando riots espalharam uma onda de violência por boa parte de Londres, Hackney foi um dos bairros mais problemáticos. Localizado na região nordeste da cidade, o bairro fica a norte de Shoreditch, onde Jack, o estripador fez sua última vítima; e a oeste de Stratford, local onde, na época, estava terminando de ser construída a Vila Olímpica (a menos de 3km de casa).

Hackney é tranqüila, um típico subúrbio londrino, cheia de parques (como todo resto de Londres), com raposas andando nas ruas e, às vezes, entrando nos trens. A vizinhança compõem-se por uma predominância turca e mulçumana ao sul (próximo de minha casa) e completamente judaica ortodoxa ao norte, criando uma bizarra e pacífica faixa de Gaza londrina.

Minha casa em Hackney. A janela do meu quarto é a de cima, do meio.
Minha casa em Hackney. A janela do meu quarto é a de cima, do meio.

Sem nenhuma relação com a religião (sem ironias), também era conhecida como uma das regiões mais violentas de Londres, o que ainda assim passava mais segurança do que estar na região mais segura do Brasil – tanto que a porta dos fundos de casa nunca ficava fechada à chave.

Lar, doce lar

Os gritos de Giuseppe ecoavam pela casa todas as tardes, saindo da cozinha onde o prendado cozinheiro fazia algum prato soberbo e que cheirava bem. Provavelmente estava cozinhando algo que incluía alcaparras, coentro, manjericão ou algum outro hortifrutigranjeiro peculiar. O italiano – que viria a trabalhar como chefe de cozinha no futuro – provavelmente gritava para se comunicar com Marco, que devia estar no quarto que dividiam; mas é bem provável que ele manteria o tom de voz mesmo se estivessem no mesmo cômodo. A formação inicial da casa ainda incluía um espanhol, e mais um italiano, que iriam deixar Londres no final daquele ano.

Italiano era a língua oficial de casa. Os moradores não se esforçavam para aprender o inglês, mas, com a ajuda de meu conhecimento prévio em espanhol, aprendi bem rápido a língua – pelo menos o suficiente para manter o convívio em meu próprio lar.

Meu quarto era composto por uma cama – maior do que de solteiro, menor do que de casal -, um armário de duas portas, onde um jornal dobrado improvisadamente calçava um dos pés para que o mesmo não caísse, uma cadeira e uma mesa. O dinheiro que me sobrava havia sido gasto naquela semana com o pagamento adiantado do aluguel – exigência do landlord para garantia de locação – e a compra de um notebook Windows que seria o suficiente para buscar trabalho e fazer meus freelas.

A vida sem grana

Sou um paulistano de classe média. Nunca me faltou comida e eu sempre tive o socorro dos pais se eu precisasse justificadamente comprar alguma coisa mais cara, mas mesmo assim, nunca fui dispendioso.

Quando você se vê realmente sem dinheiro pela primeira vez, é um misto de desespero com excitação. Como George Orwell diz no livro Na pior em Paris e Londres, você sente um certo alívio: você sabe que o seu dinheiro pode acabar um dia, mas não sabe como você viveria sem ele. E de repente, a resposta está ali, e você realmente consegue se virar, se alimentar e até se divertir vivendo na miséria.

É bom deixar claro que eu sempre tive o plano B, que consistiria em ligar para meus pais ou familiares e dizer que sim, falhei miseravelmente, atingi o fundo do poço e precisaria de uma passagem de volta para casa, mas eu já havia descartado completamente a idéia de usar esse plano – seja por orgulho ou por qualquer outro motivo.

London at morning

Assim, no mês e meio seguinte, eu mantive minha vida me alimentando mal e dormindo pior ainda. Sem dinheiro para comprar um reles cobertor, eu me cobria todas as noites com minha blusa velha e usava algum outro trapo de roupa dobrada como travesseiro. No chão do meu quarto, na maioria das noites, dormia Pedro, que pelo menos andava com um saco de dormir e um travesseiro apropriado.

É engraçado que, quando você está numa situação degradante, são justamente as pessoas que se encontram em uma situação pior ou semelhante as que mais te ajudam. Em troca da hospedagem vagabunda que eu propiciava, Pedro me pagava algumas cervejas e foi através dele que aprendi diversos macetes da vida londrina. Comprávamos comida congelada buscando uma relação custo-benefício através da escala preço-quantidade de calorias.

Na parte alimentícia, me salvava comendo os hamburgueres do McDonald’s. Tido como comida de status no Brasil, onde um lanche custa uns R$18, em Londres é a refeição dos derrotados, e às vezes, a escolha mais saudável que se pode comer com pouco dinheiro. O cheeseburguer de 1£ salvou várias vezes o meu dia e, por mais de uma vez, sentei-me em alguma mesa onde acompanhava o meu lanche com o resto de batatas que alguém tinha abandonado ali.

Os lanches naturais do Tesco eram mais saudáveis e mais baratos, porém eles exigiam um bom punhado de astúcia para serem incluídos em meu cardápio. Eram basicamente sanduíches frescos com diversos recheios, feitos em pão de forma e empacotados industrialmente. Cada um deles custava entre 3£ e 5£. Porém, pela natureza do alimento, a data de validade deles não era maior do que dois dias.

Assim, no final de cada dia, os mercados desovavam seus sanduíches a míseros cents, só para não ter o trabalho de jogá-los fora. Era possível, então, comprar lanches a 0,20£ ou até menos. Com o tempo e um pouco de perspicácia, decorei a hora em que o funcionário do Tesco mais perto de casa trocava os preços dos lanches. Várias noites, então, ia para lá, onde ficava com outros dois mendigos esperando ele jogar na bandeja os sanduíches com preços alterados. Aí valia a lei do mais rápido, e o primeiro que pegasse o sanduíche levava, numa batalha surpreendentemente justa e respeitosa. Os mendigos também eram extremamente habilidosos nisso e raramente eu conseguia um sanduíche de camarão, por exemplo.

Eram raros os dias em que eu tinha mais de uma refeição. Depois, quando eu consegui um trabalho vagabundo na área de programação, em alguns dias eu saía por uma hora no horário de almoço simplesmente para ler um livro, apenas para que ninguém no trabalho percebesse que eu não tinha dinheiro para almoçar.

Ler era uma das atividades que eu me dedicava bastante na época. Livros em Londres são muito baratos e era possível facilmente se perder por horas nos sebos da região de Charing Cross. A verdade é que é muito fácil se divertir de graça em Londres. A cidade tem quase uma dezena de museus gratuitos e provavelmente mais de uma centena de parques públicos, mas somente caminhar à beira do Tâmisa já era o suficiente para se entreter por uma tarde inteira.

Outra atividade que eu aprendi a gostar era a corrida. Gratuita, nos finais de semana, corria facilmente de 8km a 12km, como treinamento para a Tough Guy. Uma curiosa consequência do meu período de miséria foi a minha boa forma. Cheguei ao meu menor peso de minha idade adulta e na minha melhor condição física.

Repare no semblante raquítico do menino (e isso já era fevereiro)
Repare no semblante raquítico do menino (e isso já era fevereiro)

Durante todo o período de pobreza, mantive ativa minha busca por emprego. Fazia uns trabalhos freelancers para alguns amigos no Brasil, mas que o pagamento não valia a pena, por conta da taxa de troca de câmbio (ganhar em reais para gastar em libras não é uma boa idéia).

Ia em todas as entrevistas com a única camisa social que eu tive a presença de espírito de colocar em meu mochilão. Em uma das entrevistas, desrespeitei a exigência de ir de gravata porque não tinha dinheiro para comprar uma. Sem surpresas, não fui lá chamado de novo.

Quando a Teradata me aprovou na primeira fase do processo seletivo deles, comprei uma nova camisa social na Primark, uma loja lotada de compradores brasileiros que querem aproveitar as ridículas promoções de belas e vagabundas camisas a 2£. Era uma empresa que havia me chamado muito a atenção e que eu realmente queria trabalhar, então achei que devia, no mínimo, ir com camisas diferentes no longo processo seletivo que eles empregavam. A última fase do processo incluiu até uma viagem a Birmingham paga pela empresa para uma entrevista em outro escritório. No final, o longo processo seletivo deles se mostrou extremamente incompetente pois acabaram me contratando.

Assim, no dia 12 de dezembro de 2011 eu comecei meu trabalho na Teradata, em um cargo surpreendentemente alto e com um vitorioso salário. Nas primeiras duas semanas eu fui enviado para os Estados Unidos para treinamento e início de um projeto. Eu passaria ainda o Natal em Paris onde teria um emocionante reencontro com minha mala de roupas para o inverno.

Por política da empresa, o primeiro salário, como era por um mês incompleto, só seria pago juntamente com o segundo. Assim, no dia 03 de janeiro de 2012, quando retornei a Londres após as viagens festivas de final de ano, tudo o que me restava eram 3,40£ na carteira e 20£ no banco, que teriam que ser suficientes para eu me manter vivo até o dia 25, quando receberia meus quase dois salários e me livraria dessa situação deprimente em que me meti.

Naquele momento, Pedro já havia regressado ao Brasil, tendo partido de Londres enquanto eu estava nos Estados Unidos e me deixado de herança uma boa quantidade de roupas e todas as roupas de cama que ele usara no período em que esteve na Inglaterra, de forma que eu não mais passaria frio. Meu outro anjo seria Priscila, a quem eu estava destinado a pedir um caridoso empréstimo durante o mês de janeiro.

A minha sorte, porém, realmente havia mudado e, na quinta-feira, 05 de janeiro, dia que eu iria encontrá-la, meu chefe me chamou e perguntou se eu tinha disponibilidade para voltar aos Estados Unidos pelas próximas quatro semanas. Como, mesmo naquela época desgraçada, eu tinha menos bom-senso do que dinheiro, eu prontamente respondi que não, afinal, eu teria uma corrida para fazer em Wolverhampton dali a 26 dias. “E se for pra ficar só 3 semanas?”, perguntou ele depois, recebendo uma evidente resposta afirmativa. A empresa banca completamente a hospedagem e alimentação quando se trabalha alocado em outro lugar e, pelas próximas três semanas, dinheiro não seria um problema para minhas necessidades básicas, pelo menos.

Até hoje, nem meu chefe sabe que salvou a minha vida e nem a Priscila sabia que eu iria pedir dinheiro para ela.

Quando voltei dos Estados Unidos no dia 26 de janeiro de 2012, percebi que estava com saudades de Londres já. A cidade me pareceu familiar, o meu quarto realmente me pareceu como um lar, eu já tinha dinheiro na conta e, mais do que em qualquer outro momento na minha vida, eu me senti vitoriosamente feliz.

Última visão do meu quarto, antes de abandoná-lo para sempre, em setembro de 2012.
Última visão do meu quarto, antes de abandoná-lo para sempre, em setembro de 2012.