O Trem Tazara

O continente esquecido

Capítulo do livro “O Continente Esquecido”, com relatos organizados de uma viagem que fiz pela África em 2014.

[Comprar na Amazon]

Se alguém algum dia disser que é uma boa idéia cruzar o leste africano de trem, duvide.

Viajar pelo continente por terra sempre é um desafio e uma aventura. Os ônibus são confusos, as linhas às vezes simplesmente não existem, os horários são meramente fictícios, sem contar o calor africano e o desconforto dos veículos mal-conservados. As raras opções de trem não parecem ser diferentes, a julgar pela minha ineficiente aventura na Tazara Railway, ferrovia que liga uma das cidades mais importantes da Tanzânia com o absoluto meio do nada na Zâmbia. Os vagões têm décadas de uso, os trens quebram com freqüência e os atrasos são praticamente uma certeza. Meu trem, por exemplo, tinha a partida agendada para as dez da manhã, mas só saiu da estação ao meio dia, totalizando um atraso de vinte e seis horas.

O mapa, em chinês, do trem Tazara

Para meus propósitos, era o roteiro ideal: partir das praias paradisíacas e savanas lotadas de animais selvagens da Tanzânia em direção ao meu próximo destino africano, as maravilhosas quedas d’água de Victoria Falls, no sul da Zâmbia, na fronteira com o Zimbabwe. Porém, as informações sobre o trem são praticamente nulas e nem mesmo algumas agências turísticas da Tanzânia pareciam ter conhecimento da existência de tal possibilidade de viagem. Em alguns momentos, cheguei a pensar que a linha não existia e era uma criação de minha mente perturbada.

A Tazara Railway existe sim. A idéia de ligar o interior da Zâmbia com um um porto próximo é antiga, como uma alternativa às rotas de comércio existentes pela Rodésia (atual Zimbabwe) e Moçambique, principalmente após a independência da Zâmbia, quando as rotas que passavam pelos países que ainda pertenciam ao Império Britânico começaram a ser ameaçadas. Assim, logo depois da Segunda Guerra Mundial, surgiu esse projeto milionário. Ele foi por duas vezes reprovado, em 1952 e 1964, por ser considerado economicamente inviável. Os chineses, porém, apareceram para salvar a história. Através de um engenhoso acordo comercial com Tanzânia e Zâmbia, eles patrocinaram e executaram por conta própria (talvez por conhecimento do jeitinho africano) a construção de 1860km de ferrovia ligando o porto de Dar Es Salaam à cidade de New Kapiri Mposhi, no meio da Zâmbia. É difícil entender porque eles decidiram colocar o final zambiano da linha num local ermo e abandonado e não estendê-lo por mais 200km até a capital Lusaka, no que transformaria a ferrovia num elo entre duas importantes cidades da África. 

Em 1967, foi firmado um acordo em Beijing entre os presidentes da China, Tanzânia e Zâmbia para o projeto. As obras começaram três anos depois, em 1970, com grande parte do equipamento e mão-de-obra chinesa: mais de 50.000 chineses passaram pelo continente durante os anos de planejamento e execução da construção. No ano de 1972, no ápice do trabalho na linha, haviam mais de 13.000 operários chineses e mais de 38.000 operários africanos trabalhando simultaneamente. A força operária oriental rendeu resultados: a ferrovia ficou pronta dois anos antes do previsto e as operações começaram em outubro de 1975, provavelmente no único momento que a operação Tazara trabalhou adiantada. Nos anos de funcionamento sob controle africano, certamente os atrasos acumulados já compensaram com folga esses anos economizados pelos chineses.

Dar Es Salaam

Eram sete e meia da manhã de uma sexta-feira quando peguei um tuk-tuk em direção à estação Tazara. Locomover-se na África é sempre uma aventura, mesmo que seja dentro das grandes cidades, e Dar Es Salaam não é diferente: o transporte público se baseia em “dalla-dallas“, vans coloridas que trafegam quase sempre lotadas, com os passageiros embarcando e desembarcando delas em movimento e um cobrador pendurado na porta chamando por mais clientes. Para quem quiser um pouco mais de conforto, há os táxis, e um turista branco caminhando pelas ruas é visto como uma grande oportunidade de uma viagem a custo abusivo, por isso os taxistas são insistentes. Alternativas mais baratas (o que não quer dizer que o turista não será explorado, apenas que ele gastará menos) são as motos – que levam os passageiros sem capacete e sem condições mínimas de segurança, entrando na contra-mão, subindo nas calçadas e canteiros de obras – e os tuc-tucs, uma espécie de scooter de três rodas em que o passageiro tem um mínimo de conforto, por viajar sentado em uma pequena cabine.

Carregava comigo um mochilão de viagem de 12 quilos, uma mochila e uma sacola com suprimentos (petiscos e garrafas de água) que deveriam durar pelo menos três dias de viagem. Para percorrer os quase dez quilômetros de meu hotel até a estação foram gastos 15000 xelims tanzanianos (algo em torno de R$23,00 na época), pagos no meio do caminho, quando o motorista parou no posto de gasolina e pediu para adiantar o pagamento para que ele tivesse dinheiro para abastecer o tanque.

A imponente estação de Tazara

Faltavam ainda dez minutos para as oito da manhã quando eu cheguei na bela, imponente e descuidada estação Tazara e o lugar já fervilhava de gente. Famílias chegavam, homens de todas as idades, mulheres com vestidos coloridos, levando malas na cabeça e crianças sustentadas por lenços, carregadas nas costas. Um guarda-volumes havia sido convertido em um mini-mercado e vendia café e bolo de laranja aos poucos passageiros que acreditavam na pontualidade dos trens africanos. A recomendação era chegar na estação às 8h da manhã para fazer check-in antes das 9h. A partida do trem estava prevista para as 10h30.

Vasculhei minha carteira por meu ticket que havia sido comprado duas semanas antes. Era um pequeno e simples pedaço de cartolina azul, de 3cmx6cm, tão pequeno e frágil que ficou habilmente escondido em um lugar que não pudesse ser danificado. O custo de minha passagem de segunda classe havia sido de 70800 xelins tanzanianos, algo em torno de R$105,00. A segunda classe é o tipo de viagem mais barata que pode ser feita em leito, com seis camas por cabine, conforto que eu achei minimamente necessário, mesmo viajando com um limitadíssimo orçamento. Com o ticket em mãos, entrei na fila do guichê para tomar conhecimento dos próximos passos que deveria tomar. Na minha frente, uma canadense e uma japonesa compravam seus bilhetes de última hora, contrariando a idéia que haviam me passado que os tickets esgotavam com antecedência.

Meu ticket era isso tudo. A data de minha viagem: 17/10/2014.

Minha apreensão estava, na verdade, na chegada em New Kapiri Mposhi, ponto final da linha. Eu temia chegar lá quando já estivesse escuro e não encontrar transporte até Lusaka e nem hotel para passar a noite na minúscula cidade zambiana. Por isso, depois de preencher meu nome e nacionalidade num caderno que eu percebi que funcionava como controle de bordo, perguntei logo à atendente:

– Qual a previsão de chegada em New Kaipiri Mposhi?

– Domingo à tarde. – respondeu ela – O trem está atrasado. Ele só sai às 5:30 da noite.

A África é uma terra de atrasos. Eles fazem parte da cultura local como o fast food faz parte da americana, como o chá faz parte da inglesa e como reclamar faz parte da brasileira. No curto texto sobre a linha férrea, a recomendação do guia Lonely Planet que eu carregava comigo era de reservar de 3 a 5 dias para a viagem que deveria durar de cerca de 40 horas. Um atraso de sete horas, portanto, chegava a ser previsível.

Tendo o conhecimento que eu perderia a tarde esperando na estação, subi ao salão de espera através de uma comprida escadaria que se dividia. No topo das escadas, de frente ao saguão, um quadro mostrando um mapa da ferrovia dominava uma parede, com legendas em chinês em cada parada. Diversas cadeiras marrons enfileiravam-se pelo salão. Na frente, próximo à entrada, um mini-mercado improvisado contava com duas geladeiras e estendia caixas de refrigerante delimitando seu espaço. Com o decorrer das horas, boa parte daqueles refrescos seriam consumidos por conta do calor africano que fazia no dia. Os banheiros estavam em condições precárias, sujos e sem iluminação, com os vasos e mictórios depredados e um grande tambor azul de água que eu prefiro não imaginar para que servia. Uma boa dúzia de pessoas entediadas – a imensa maioria negras – já ocupavam as cadeiras e acomodavam-se no chão, próximas às paredes, estendendo panos e toalhas como se estivessem em um piquenique no parque, com crianças brincando e restos de comida espalhados ao redor. Uma porta na parede oposta à entrada da estação indicava o lounge da primeira classe e, como não havia controle nenhum de acesso, depois de um tempo me esgueirei para dentro da sala, apesar do meu ticket ser para segunda classe. Não haviam luxos característicos de uma primeira classe: era uma sala pequena, de aproximadamente 25m², de paredes amarelas, bancos porcamente estofados, mesas de madeira baixas, uma bancada de azulejos de um bar desativado e pedaços do forro do teto despencando. Do lado oposto à porta, era possível ver as duas plataformas e o final dos trilhos, um cenário desolador sem nenhum trem estacionado. A primeira classe também tinha o próprio banheiro, com nossa própria família de destemidas baratas lá habitando.

No “lounge”, só haviam turistas brancos. Um casal de alemães curtia seu segundo dia na África, após terem sido roubados em um táxi no dia anterior. A canadense que estava na minha frente no guichê havia reservado uma cabine toda de primeira classe só pra ela e uma amiga. A japonesa também estava lá, assim como dois outros orientais entretidos com seus iPads. Havia ainda outro sueco que, assim como eu, estava claramente há muito tempo na África: possuía ele também uma grande barba tão suja quanto o resto de suas coisas e seu cabelo desgrenhado apresentava indícios de um dia ter sido loiro. Também ele carregava uma sacola de supermercado com o que pareciam ser mantimentos para a viagem. Completavam o time três amigos holandeses que faziam uma volta ao mundo, sendo um casal em lua-de-mel e o melhor amigo deles, que merecia receber o prêmio de vela do século. Era ali que eu imaginava que iria esperar até a partida do trem, às 5h30.

Havia um pequeno detalhe: a cultura suaíli, predominante na Tanzânia, não conta as horas da mesma forma que estamos acostumados. A contagem do tempo é feita a partir do nascer e do pôr do Sol, às 6:00 e às 18:00. Então, quando um tanzaniano se refere às 2:00 da manhã, ele quer dizer 8:00 da manhã. E, quando eu fui informado que o trem sairia às 5:30 da noite, na verdade, a atendente queria dizer 23:30. Foi assim, conversando com um dos turistas ali, que eu descobri que o trem, na verdade, não sairia no final da tarde, mas com outras seis horas de atraso, no final da noite.

Passei algumas horas revezando entre conversar com algum dos novos amigos de espera daquela sala ou estar absorto em alguma leitura de qualquer coisa que eu carregasse em meu Kindle. Eram 16:30 quando uma voz ecoou em um inglês tão enrolado que o máximo que conseguimos foi captar palavras aleatórias, algo como um novo atraso. Nós, presentes no lounge da primeira classe, nos entreolhamos. Um holandês e a canadense, ligeiramente mais proativos, decidiram sair para procurar mais informações. Eles voltaram com sorrisos desconcertados no rosto: havia um novo atraso e o trem só partiria no dia seguinte, às 9 da manhã. A reação dos presentes ao ouvir essa frase não era de irritação ou descrença, mas sim uma risada nervosa, de obviedade.

– Eles informaram o motivo do atraso? – perguntou, inocentemente, um dos presentes no salão.

– África. – respondeu o holandês, encolhendo os ombros e levantando os braços, com as mãos espalmadas, como se estivesse falando das travessuras de um conhecido garoto peralta. “África” era o motivo do caos, do atraso, da desorganização, da burocracia. Não precisávamos de explicações mais detalhadas. Assim era a África, todos estávamos viajando por lá e devíamos saber disso.

– Será que podemos dormir por aqui? – perguntou o sueco, levantando uma questão que boa parte dos presentes gostaria de saber a resposta. 

Sim, podíamos. A estação não fecharia e a maioria das pessoas que esperava no saguão de terceira classe também ficaria por ali mesmo. “O único problema são os mosquitos”, havia dito a atendente do guichê quando nos deu a resposta. A canadense e a japonesa não ficaram. O restante decidiu se unir e se organizar: nos reunimos e nos estruturamos. Algumas pessoas precavidas viajavam com redes de mosquito (o que é uma boa recomendação para qualquer mochileiro que vá em algum ponto da África com alta incidência de malária). Iríamos dividir as poucas redes que tínhamos para tentar proteger a todos. Juntamos dinheiro e eu fui parte do time que iria até o mercado mais próximo, a 2km de distância, para comprar mantimentos para todos (pizza, cerveja e salgadinhos). Quando voltamos, terminamos de organizar nossas “camas”, que eram bancos colocados juntos em disposições quadradas para que a rede de mosquitos protegesse a todos. Os japoneses montaram uma barraca no canto do lounge. Tudo foi feito às pressas, antes que a luz do Sol se esvaísse e o salão ficasse às escuras. Em poucos minutos, o lounge da primeira classe havia criado sua própria sociedade de sobrevivência. Se tivéssemos uma semana de atraso, provavelmente, teríamos uma organização política presidenciável, talvez com moeda própria e consertaríamos os buracos do teto.

Nossas camas estrategicamente colocadas com redes anti-mosquitos que se provaram inúteis.

No salão principal, a terceira classe dormia desconfortavelmente. Dezenas de crianças estavam deitadas no chão, em cadeiras, em qualquer lugar. Restos de comida e lixo já se espalhavam por todos os cantos do salão. Inconscientemente, havíamos gerado um pequeno apartheid: estrangeiros brancos e orientais no lounge junto com um intruso latino de segunda classe. Lá fora, somente negros. Tal qual no regime sul africano, a única limitação que separava as raças era psicológica: não havia nada restringindo a entrada da terceira classe em nossa sala, a não ser uma placa indicativa que aquele era um lounge de primeira classe. Mesmo assim, a separação persistia.

No meio da noite, novos habitantes brancos chegaram em nosso pequeno reinado caucasiano: uma bonita garota austríaca e um grupo de nove cristãos que estavam em uma cruzada pelo mundo (oito sul-africanos e um brasileiro). Acomodamos todos como foi possível, como se estivéssemos recebendo novos refugiados. Compartilhamos a cerveja e os salgadinhos que restavam e novas redes de mosquito foram habilmente estendidas.

A ceia dos campeões

Nos espalhamos por nossos bancos e dormimos sonos conturbados, incomodados por picadas de mosquitos. As redes não eram muito eficazes, uma vez que era possível ver mosquitos que voavam no interior delas, como moscas de padaria dentro de vitrines de salgados.

Por volta das 6h, acordamos com a chegada do trem. Quando a luz do sol finalmente iluminou nossa pequena nação, foi possível enxergar nossa bagunça: mesas empilhavam-se para que pessoas dormissem no chão e latas de cerveja empilhavam-se em cima delas. Os mosquitos estavam tão empapuçados com nosso sangue que voavam baixo, rente ao chão, tão gordos que não conseguiam ir mais alto.

Nossa nação caucasiana acorda para mais um dia

Às 8:00, que seria o horário de embarque, recebemos a informação de que o trem só sairia ao meio-dia. “Dessa vez é verdade”, disse a atendente, deixando subentendido que todas as outras vezes eles sabiam que era mentira. De qualquer forma, às 11h, o embarque começou, ainda com certa descrença dos passageiros se o trem sairia mesmo.

O primeiro dia de viagem

A linha Tazara pode ser considerada um museu em funcionamento. A construção dela data da década de 70. É quase certo que os vagões ainda sejam os originais. Os painéis de comando estão em chinês e é possível ver claramente ideogramas nas portas e peças de sustentação dos trilhos. O trem estava em um estado precário. Os banheiros eram nada mais do que um buraco no chão onde os dejetos eram jogados diretamente nos trilhos. A terceira classe não possuía leitos, eram simplesmente bancos nos quais os passageiros se espremiam, provavelmente sem limite de lotação. O couro marrom de boa parte dos bancos já havia se deteriorado e alguns deles não passavam de um pedaço nu de espuma. Comparado a isso, a primeira classe realmente parecia uma coisa luxuosa, com quatro leitos por cabine e cobertores para todos. A única diferença da primeira para a segunda classe era uma espuma levemente mais grossa nas camas e a quantidade de leitos por cabine, de quatro para seis. Quando eu cheguei em minha cabine, porém, só havia um outro passageiro: um tanzaniano, negro, baixinho e de testa proeminente, que só falava suaíli e usava uma camisa da seleção de rugby do país. Acomodei-me na cama oposta à dele. A janela só mantinha-se aberta por conta de um pedaço de madeira em que ela se apoiava, uma vez que os fechos também estavam quebrados.

Assim que o trem finalmente começou a andar, peguei meus suprimentos e me servi um almoço baseado em um pãozinho e suco de lichia de caixa. Ofereci a meu novo companheiro de cabine um dos meus pães, e ele aceitou a oferta – porém ele guardou o pão na mochila. Horas mais tarde, abri um pacote de salgadinhos, o qual também dividimos. Ele não falava inglês, então nossa comunicação era parca.

Tazara atravessando a África

O trem viajava a uma velocidade baixa e fez diversas paradas em algumas estações minúsculas e descuidadas. A cada parada, era possível ver da janela um exército de vendedores, principalmente mulheres e crianças, atacando o trem com baldes cheios de garrafas de água e refigerantes, aros de ventiladores servindo de suporte a salgadinhos, tigelas sendo carregadas na cabeça de mulheres, cheias de pimentões, tomates, cenouras, pães assados, bandejas com pedaços de frango ou bananas – comidas de higiene duvidosa que eram servidas em jornais.

A pobreza tipicamente africana

Passei boa parte do dia simplesmente admirando a paisagem: o trem passava por pequenas cidades, margeando estradas, atravessando savanas típicas africanas, florestas e vilarejos. Mostrava também parte da pobreza africana, passando perto de vilas deterioradas, com crianças desnutridas acenando de casas de barro, cruzava dezenas de lixões e criava também seus próprios lixões conforme ia seguindo. Os africanos em geral não tem o menor cuidado com o próprio lixo, simplesmente atirando todo tipo de detritos pela janela. Durante a viagem, vi voar das janelas de nosso trem um saco de cenouras, cascas de abacate, papéis, sacolas, restos de comida, dezenas de garrafas vazias de água.

A sujeira gerada preocupava principalmente pelo fato do trem atravessar um importante parque nacional da Tanzânia, que é um dos destaques da viagem.

Lixo e catástrofes

Enquanto atravessávamos o Parque Nacional de Udzungwa, meu companheiro de cabine entrou trazendo consigo duas garrafas de um suco de mix de frutas, e deu uma delas para mim, como retribuição pela comida compartilhada. Eu aceitei e ficamos os dois sentados, bebendo nossos sucos em silêncio, enquanto admirávamos o parque.

“Zebras!”, disse eu, apontando uma manada delas quando a vi. “Zebras?” perguntou ele, e adicionou logo depois, apontando o mesmo animal: “Punda milia.” eu já tinha ouvido essa palavra e logo entendi que ele estava me ensinando o nome em suaíli. Eu repeti desajeitadamente o nome. E ele soltou um encabulado “zebras”. Estávamos desenvolvendo finalmente alguma comunicação.

“Elefantes!” disse eu, algum tempo depois, apontando três grandes elefantes marrons que andavam junto com o trem. “Elefantes. Tembo.”, repetiu ele, e eu repeti, depois, rindo e curtindo o momento. Seguimos pelo parque, apontando animais e dizendo o nome deles, enquanto bebíamos o suco compartilhado, numa espécie de safari de trem, educativo e multicultural.

Savanas e mais savanas

O segundo dia de viagem

A noite foi sacolejante, mas tranqüila. Deitei-me e acomodei-me em cima de minha mochila, também com a intenção de protegê-la e tive sonhos inquietantes com terremotos – culpa óbvia do incessante movimento do trem.

Quando acordei, por volta das 7h, havia um novo grupo de negros em minha cabine, um deles testando a tomada para carregar o celular e reclamando da inexistência da eletricidade. O meu amigo do dia anterior já havia partido e estes agora eram dois africanos mais velhos, um que parecia uma versão sem graça do Bill Cosby e o outro, que falava um pouco de inglês, era praticamente um sósia dos últimos anos vividos do craque Eusébio, estrela da seleção portuguesa de 1966.

Às 8:45 da manhã, o trem parou de novo. Não parecia haver uma estação próxima, então o fato dele ficar parado por meia hora era estranho. Funcionários pareciam estar trabalhando nas engrenagens do vagão imediatamente à nossa frente. Meu colega de cabine parecido com o Eusébio desceu e passou alguns minutos conversando com os técnicos. Quando ele voltou, o trem recomeçou a andar, depois de uma hora parado.

– Os freios do vagão da frente estavam tão desgastados que estavam quase caindo. – explicou ele.

– Ah. E eles arrumaram? – perguntei, inocentemente.

– Não. Removeram os freios.

Por alguns minutos fiquei me perguntando se era melhor estar em um vagão sem freios ou com os freios quebrados. Independente do problema, às 16h o trem chegou inteiro (na medida do possível) no último ponto da Tanzânia, em Mbeya. A entrada na Zâmbia iria requerer, além da típica burocracia de fronteiras africana, uma troca de trem para percorrer o resto da viagem. Com um pequeno problema: o trem não estava lá. E não iria estar.

A Fronteira

Em agosto de 2014, o controle de operação dos trens, que era centralizado por toda linha, foi dividido. As autoridades dos dois países já trocavam acusações em relação à linha que deveria ser um marco da amizade e comércio entre eles. A Tanzânia dizia que foi um comum acordo dividir a linha, a Zâmbia dizia que não tinha conhecimento da divisão, mas estaria preparada para assumir o seu lado, a China dizia “não briguem, crianças, eu ajudo vocês a cuidar do Ferrorama”, mas não adiantou e hoje o controle da Tazara é dividido entre os países, cada um cuidando do seu lado.

Desde então, os passageiros que desejam percorrer o caminho todo deveriam descer na estação de Nakonde (a primeira do lado da Zâmbia), trocar de trem e seguir viagem até New Kapiri Mposhi em um novo trem, teoricamente idêntico ao outro. É o tipo de burocracia sem sentido que a África adora e presenteia seus habitantes e viajantes com freqüência. 

Mas o trem que deveria nos esperar na estação de Nakonde não estaria lá. As informações eram desencontradas, mas um tanzaniano carregando imensas sacolas, que havíamos conhecido na estação de Dar Es Salaam e que fazia essa viagem com certa freqüência disse que o trem zambiano já havia partido, que eles não poderiam esperar mais de 24 horas pelo outro trem. De acordo com ele, a administração da Zâmbia é um pouco mais organizada e pontual e ter que lidar com o caos tanzaniano foi um dos motivos da separação das linhas.

Assim, nosso trem simplesmente se recusou a entrar na Zâmbia, parando na última estação possível: Mbeya. Ali também era o ponto final da maioria dos antigos habitantes de minha pequena nação do lounge da primeira classe: depois das desventuras na estação Tazara, eles haviam decidido viajar juntos, descendo pela fronteira tanzaniana até o Malawi. Me despedi deles e os vi partindo em grupo para o centro da cidade, onde iriam passar a noite, já que eles não queriam chegar na fronteira com o Malawi quando já estivesse escuro. Por um momento, senti inveja e vontade de esquecer Victoria Falls e simplesmente mudar novamente meus planos de viagem para ir com eles, mas meu tempo na África era curto e eu tinha assuntos a tratar no Zimbabwe.

Estação de Mbeya, meu inesperado ponto final

Pelo nosso contratempo, parte do valor dos tickets foram reembolsado. A mim, deram de volta 40 mil xelins tanzanianos (quase R$60), um pouco mais da metade do ticket; imagino que eles acharam que eu era um viajante de primeira classe e me deram um reembolso equivalente. Também nos foi informado que um ônibus estava sendo providenciado para nos levar até a fronteira, de onde teríamos que tomar nosso próprio caminho para onde quer que fosse. Era um domingo à tarde e eu estava tão amargurado que desejei profundamente estar em casa assistindo Faustão.

Partilhando as dificuldades, haviam a canadense e a amiga, uma chinesa, um japonês, um zambiano que também viajava em primeira classe transportando mercadorias e uns seis ou sete negros de terceira classe, incluindo uma criança com sintomas de malária. O nosso suposto ônibus chegou: era, na verdade nada mais que um Dalla-dalla tanzaniano, colorido e minúsculo. Nos apertamos na lotação, com nossa bagagem ocupando boa parte do espaço, incluindo mochilas em nossos colos. O motorista dirigia como um motoboy de São Paulo e os freios do veículo exalavam um forte cheiro de queimado. Não só isso, como eles também paravam o carro com freqüência para tentar angariar novos passageiros, o que nos atrasava demais e comecei a ser invadido pelo medo de não chegarmos na fronteira antes do anoitecer.

Já havia mais de uma hora de viagem e o sol estava sumindo no horizonte quando o cobrador veio nos pedir o pagamento da passagem. Como assim? Todos nós achávamos que aquele veículo tinha sido disponibilizado pela Tazara e estava já pago. Além de não estar pago, ele não atravessaria a fronteira: nos deixaria na entrada da alfândega e daria meia volta, nos abandonando no meio da noite na entrada da Zâmbia. Uma discussão se instaurou na lotação: aquilo não era o que tinham nos dito pelas autoridades da Tazara em Mbeya. E não poderíamos ser largados no meio do nada. A canadense telefonava fervorosamente para tentar contactar um conhecido que morava em Nakonde, para ver se ele podia resgatá-la. O japonês estava completamente perdido, gritava “We no Pay!”. A criança com malária, obviamente, vomitou. A chinesa, o outro zambiano e eu tentávamos buscar alguma solução. No final, acertamos um preço para os passageiros, incluindo o cruzamento da fronteira e a entrada na cidade de Nakonde, para que não fôssemos abandonados no meio do nada.

Eram mais de 20h quando a lotação chegou na fronteira. O motorista já estava impaciente e tentou nos apressar o máximo possível para que fizéssemos logo todos os extensos trâmites burocráticos característico das alfândegas africanas. Dentro do escritório, os guardas federais pareciam bastante entretidos com a televisão, que exibia uma versão zambiana do Big Brother e, por isso, demoraram um pouco mais de tempo para a emissão do meu visto. Fui o último a sair do prédio, ainda a tempo de ver nossa lotação partindo sem mim. Num arroubo de desespero, lembrei da minha mochila que havia ficado lá dentro e, quando ia sair correndo atrás do veículo, vi a chinesa me chamando, com minha mochila nas mãos.

– Peguei suas coisas! – disse ela – O amigo da canadense mora aqui na cidade e vai nos levar em algum lugar barato para passar esta noite.

Respirei aliviado. Eu ainda estaria dependendo da caridade de um amigo distante de uma pessoa que eu mal conhecia, mas eu não tinha muito o que fazer naquela hora. Só observei uma última vez a lotação partindo pelo caminho enlameado daquela fronteira africana, aquele veículo que era finalmente minha última ligação com a Tazara, a linha de trem que estava me proporcionando aquela grande e cansativa aventura.

Zâmbia

O amigo da canadense nos levou a um hotel barato no centro de Nakonde. Éramos apenas cinco agora: a canadense e sua amiga, a chinesa, eu e o japonês. Assim como eu, os meus novos amigos orientais também estavam indo em direção a Livingstone para visitar a Victoria Falls. Decidimos então, fazer o resto da viagem até lá juntos. Aquela noite, eu dividiria um quarto com o japonês ao custo de 16 dólares cada um e a chinesa dormiria com as canadenses em outro quarto. Nosso chuveiro não tinha água quente e o banheiro estava imundo, cheio de pegadas, talvez o suficiente para um daqueles detetives do seriado CSI traçar a história dos quatro últimos hóspedes.

O resto da viagem foi cansativo, tedioso e não é digno de merecer maiores detalhes. Saímos de Nakonde às 7:00 do dia seguinte, em direção à Lusaka. Às 19:00 um funcionário do ônibus nos informou que aquela linha não iria para Lusaka e teríamos que descer na próxima cidade e pegar um novo ônibus. Eles nos reembolsou parte do dinheiro – apenas o suficiente para pagarmos o próximo ônibus – e descemos. Ironicamente, a cidade que estávamos era New Kapiri Mposhi, e, mesmo não chegando lá de trem, eu me encontrava na exata situação que temia: no começo da noite, a 200km da capital da Zâmbia. Foram mais 3 horas de viagem até a estação de Lusaka, aonde decidimos dormir na própria rodoviária, rodeado por mendigos e mariposas.

No dia seguinte, uma terça-feira, pegamos o primeiro ônibus em direção a Livingstone. Finalmente, eram 13h quando chegamos na cidade turística, conhecida por suas quedas d’água que são uma das maravilhas da África. Ao comprar a passagem de trem, a previsão era que eu chegasse ali no domingo à tarde.

Mas, estando em Livingstone e, principalmente, em Victoria Falls Town, no Zimbabwe, eu esqueci dos problemas. As cataratas são realmente um espetáculo que valem a visita. Talvez, porém seja mais prudente chegar lá de avião. Viajar de trem na África já é aventura o suficiente para uma vida.

O continente esquecido

Mais conteúdo deste disponível no livro “O Continente Esquecido”.

[Comprar na Amazon]