O telhado de vidro da casa do rato

Recentemente, a Disney destruiu uma das melhores franquias de herói do cinema ao demitir seu produtor/diretor/roteirista/visionário James Gunn por conta de piadas ofensivas postadas na rede social do passarinho azul Twitter entre os anos de 2007 a 2012.

É particularmente marcante o quanto esse parágrafo me deixa indignado, uma vez que ele é recheado de itens aos quais eu tenho o que pode ser chamado de um amor irritante: Adoro o James Gunn, assisto tudo quanto é filme de herói, sou perdidamente apaixonado pela Disney, o Twitter é minha rede social favorita, os anos de 2007 a 2012 moldaram meu caráter e tem pouquíssimas coisas que eu goste mais na vida do que piadas ofensivas. Talvez só queijo.

relaxa. é só maconha.

Minha indignação não se baseia somente na revolta particular de perder o que certamente seria a melhor triologia da Marvel com a vinda de Guardiões da Galáxia 3, mas a demissão do James Gunn é o ápice de uma lamentável e irritante modinha de argumento polarizador: buscar frases e fatos do passado para desmerecer alguém no presente virou o comportamento padrão de coxinhas e petralhas, de republicanos e democratas, de franceses e ingleses, de corinthianos e cidadãos de bem.

Sim, porque é uma ferramenta extremamente simples e fácil de ser usada em uma argumentação. A base da Falácia Ad Hominem é essa: atacar o caráter pessoal do oponente de forma a destruir sua base argumentativa. E basta uma pesquisa no Twitter ou no Google para destruir completamente uma reputação. O Twitter é uma das melhores redes sociais pra isso porque até hoje ninguém entendeu direito pra que ele serve. Então no alvorecer de nossos perfis lá, ninguém sabia direito o que era pra fazer. Eu devo dizer que estou indo dormir? Devo reclamar do meu chefe aqui? Compartilhar meu almoço? A evolução natural dos principais perfis acaba sendo o humor e o dinamismo e limitações do twitter só ajudam nisso: o Twitter funciona para a criação de comédia porque só há espaço para a punchline. O humorista de Twitter não precisa de setup, setup é a vida. Por conta disso também, muitas piadas e tweets acabam saindo de contexto, quando colocadas em outras situações. E uma piada ofensiva perde a graça quando fora de seu contexto.

Não só a ausência de contexto ajuda nisso mas também há outro detalhe crucial que torna a exploração do passado das pessoas em uma atitude condenável: pessoas mudam. O indivíduo “você” que existe hoje é conseqüência de inúmeros erros cometidos ao longo de anos fazendo merda. Erros são a forma mais rápida e eficiente de aprendizado, então cometê-los é necessário e até recomendável.

sorte que o Paulo do presente não faz mais esse tipo de estupidez

A minha geração – da década de 80 até o comecinho da década de 90 – é a última que vai gozar de um privilégio impossível a partir de hoje: a inexistência de internet durante a adolescência. No período de nossas vidas aonde cometíamos o maior número de cagadas por segundo, tínhamos pelo menos o alento de não ter um tonto com smartphone preparado para publicar sua humilhação em praça pública no Insta-Stories ao vivo. E, além disso, o “Efeito Streisand” também garante que o conteúdo vai ficar online para sempre. Caiu na internet, não tem volta. Soa cruel comparar discursos, pensamentos e contextos presentes e passados.

Não só as pessoas evoluem individualmente, mas também a sociedade como um todo aceita e principalmente recusa temas dinamicamente. O que não quer dizer que há temas intocáveis. É possível fazer piadas de absolutamente tudo, mas um chiste envolvendo estupro infantil deve ser MUITO bom para ser melhor do que o choque que o tema causa.

Se Preacher enfrentaria problemas hoje em dia em fazer piadas levianas em temas como o racismo ou o homossexualidade, ele agora consegue chocar e ofender usando de forma magistral temas como a religião, criando um Deus sadomasoquista e um Messias retardado. Cabe ao criativo se adaptar, o que é perfeitamente normal. Certamente é inviável que “Os Trapalhões” façam hoje em TV aberta o que faziam no começo da década de 90; mas também soa absurdo a Globo demitir o Renato Aragão (é Doutor Renato pra vocês) por piadas criadas em outro contexto histórico.

E da mesma forma que as pessoas, sociedade e temas evoluem, também o fazem as empresas. A própria Disney, que não pensou mais do que algumas horas para mandar embora um empregado que fez uso de piadas extremamente infelizes e ofensivas no passado tem um histórico contestável. Como um fã declarado da empresa e da história da casa do rato, é um serviço que eu faço a mim mesmo enumerar e explicar o polêmico passado da Disney de outrora.

Tio Walt
A começar por Walter Elias Disney. Se a Disney é hoje um reino mágico e uma empresa que preza obcecadamente por sua imagem, deve tudo isso a ele. Mas Walter tinha seus desvios também: Ele foi acusado de ser anti-semita, racista, machista e até de comunista. A excelente biografia de Walt Disney escrita por Neal Gabler (esta daqui) aborda os temas de forma crua:

Another question—one that would haunt him for the rest of his life and even haunt his reputation decades after he died—was whether he was also an anti-Semite. As with race, one could certainly point to some casual insensitivity. Shortly after the release of Three Little Pigs in 1933, Rabbi J. X. Cohen, the director of the American Jewish Congress, wrote Walt angrily that a scene in which the wolf was portrayed as a Jewish peddler was so “vile, revolting and unnecessary as to constitute a direct affront to the Jews,” especially in light of what was then happening in Germany, and he asked that the offending scene be removed. Roy, speaking for Walt, responded that he felt the scene was neither vile nor revolting, that the studio had Jewish friends and business associates whom it would not dare to demean, and that the characterization was no different from that of Jewish comedians in vaudeville or on the screen. (Years later, when Pigs was re-released, the scene was reanimated.) Whether it came from this kind of insensitivity or from the fact that the Disney studio was one of the few in Hollywood at the time that was not run by Jews, a perception apparently arose that the company was anti-Semitic. Kay Kamen, the head of the company’s merchandising arm and himself a Jew, seemed to acknowledge this when he sent Roy a clipping of a photo of Walt and Lillian from a Hebrew newspaper with a note, “This proves that we are not prejudiced.”
~ Walt Disney, by Neal Gabler

Se contexto é sempre necessário para entender uma piada, não parece realmente adequado colocar uma cena ofensiva aos judeus em 1933, no começo do que viria a ser o pior período da história judaica:

https://www.youtube.com/watch?v=C7PHUtDZ0V0

Mas, apesar do evidente mal gosto da piada, ainda mais considerando o péssimo timing, as acusações de anti-semitismo soam infundadas:

There is some dispute whether the same spirit of tolerance prevailed at the studio, but of the Jews who worked there, it was hard to find any who thought Walt was an anti-Semite. Joe Grant, who had been an artist, the head of the model department, and the storyman responsible for Dumbo along with Dick Huemer, declared emphatically that Walt was not an anti-Semite. “Some of the most influential people at the studio were Jewish,” Grant recalled, thinking no doubt of himself, production manager Harry Tytle, and Kay Kamen, who once quipped that Disney’s New York office had more Jews than the Book of Leviticus. Maurice Rapf concurred that Walt was not anti-Semitic; he was just a “very conservative guy.” Still, when Tytle—who had changed the spelling of his name from Teitel, shortened from Teitelbaum, to hide his ethnicity—joined the studio, he felt compelled to tell Walt that he was half-Jewish. To which Walt snapped that if he were all Jewish, he would be better.
~ Walt Disney, by Neal Gabler

Porém, as mulheres que trabalhavam nos estúdios Disney na época de Walt dificilmente conseguiam cargos criativos ou gerenciais. Geralmente elas trabalhavam como secretárias ou na colorização de desenhos feitos por artistas homens – um trabalho que Walt considerava mais fácil e inferior na cadeia de produção de um desenho animado:

…Walt was diffident around most women, and outside of the ink and paint department, which some used to refer to as the Nunnery, there were very few women on the lot. Some of his associates thought Walt didn’t particularly like women. “He didn’t trust women or cats,” Ward Kimball observed. “Almost all of his villains were either women or cats.” Marc Davis agreed that Walt had a “great suspicion of women” and was happiest working on masculine films like 20,000 Leagues and The Great Locomotive Chase.
~ Walt Disney, by Neal Gabler

Retta Scott on Bambi became the “first girl animator,” in Walt’s words, but there would not be many more. In an Associated Press interview in 1946, Walt attributed the dearth of women animators to the fact that women were not particularly good at cartooning and that they lacked a sense of humor—statements for which Walt received a great deal of criticism…
~ Walt Disney, by Neal Gabler

Em defesa de Walt (olha que arriscado), essas declarações, impensáveis nos dias de hoje, refletem muito o pensamento da sociedade na década de 40. Walt, como pessoa, também nunca demonstrou racismo, mesmo apesar de pouquíssimos negros trabalharem lá na época.

Por incrível que pareça, as acusações mais sérias e bem documentadas contra Walter Elias Disney são as relativas ao comunismo. A história é complexa e suja: em 1941 os animadores da Disney entraram em uma greve coordenada pelo sindicato dos animadores, em busca de salários mais justos. Enquanto alguns artistas top de linha ganhavam até $300 por semana, outros recebiam apenas $12. A greve afetou fortemente a empresa e Walt guardou vários nomes de funcionários em seu caderninho de rancores.

Um protesto de cartunistas é o que tem os cartazes mais bem desenhados.

Em 1947, em um evento não relacionado à greve, ele foi chamado pelo FBI para depôr e responder sobre as ameaças de ser um comunista. No depoimento, Walt aproveitou para lembrar da greve e acusar o organizador Herbert Sorrell de comunismo:

[…]After preliminary inquiries about Walt’s background in the film industry and his producing propaganda during the war, committee co-counsel H. A. Smith asked the big question: were there any Communists or fascists at his studio? No, Walt asserted in his soft, flat, nasally midwestern voice, “I feel that everybody in my studio is 100 percent American.” But had there been Communists at the studio in the past? Yes, Walt answered, and proceeded to tell the story of how union chief Herbert Sorrell strong-armed the studio into the strike, even though, he said, his employees, whom Sorrell claimed to be representing, actually protested against Sorrell’s union. When Walt said that he wouldn’t recognize the union, Sorrell, who, Walt told the committee, he believed was a Communist, sneered that he would “smear” Walt, and Sorrell had been true to his word. Walt couldn’t remember all the groups that smeared and boycotted him—“one that is clear in my mind is the League of Women Voters”—but he did cite People’s World, the Daily Worker, and PM as three publications that he knew had flayed him. He couldn’t remember the Communist employees who had incited his studio either—only the union agitator David Hilberman. And as for whether the Communist Party deserved to be outlawed, Walt called the party an “un-American thing,” though he said he wasn’t qualified to determine whether it would violate rights to banish it.
~ Walt Disney, by Neal Gabler
[vídeo do depoimento]

Herbert Sorrell foi duramente investigado, mas nunca foram encontradas provas que o ligassem ao comunismo. Tudo indica que o caso não passou de rancorzinho de Walter.

Os documentos do FBI sobre o caso Walt Disney estão aqui.

A Disney vai à guerra
A greve dos roteiristas de 1941 atingiu bastante Walt Disney principalmente porque aquele não era o melhor momento do estúdio: a Disney vinha de dois fracassos de bilheteria (Pinocchio e Fantasia) e a Segunda Guerra rolava solta, obrigando os estúdios a produzirem filmes militares. Eram películas de animação para elevar a moral e fazer o treinamento de soldados do exército, marinha e aeronáutica americanos. Mais do que isso, as obras de Disney na época funcionam como ferramenta de propaganda de guerra americana. Com o fascismo flertando com as nações da América do Sul (Getúlio Vargas tinha lá seu apreço pelo Terceiro Reich), a jogada americana era imbuir no coração do brasileirinho o amor pela cultura americana. Para trazer essa aproximação entre Estados Unidos e o terceiro mundo americano, Walt e um grupo de desenhistas foram mandados para uma viagem na América do Sul. O objetivo era bem claro: vender os Estados Unidos pra gentalha.

The group (Walt, Lillian, and seventeen associates […]) [took from Miami] a flying boat across the Caribbean to San Juan, Puerto Rico. The next morning they left aboard a Boeing Strato Clipper for Belém, Brazil, a remote outpost at the mouth of the Amazon River. “We landed for refueling in some little place cut out of the jungle in Brazil,” Cottrell remembered. “And there were hundreds and hundreds of school children there to greet Walt. They knew who Walt Disney was. They might not have known who the president of their own country was, but they all knew Walt Disney.” From Belém they flew to Rio de Janeiro, where they stayed ten days. The stated idea was to soak up atmosphere for the films the studio intended to produce on South American customs and folklore. But the real business seemed to be displaying Walt Disney to adoring fans and South American aristocrats, including heads of state. As Frank Thomas said, “Mainly we were wined and dined all over the place, where it was real hard to do any work.”
~ Walt Disney, by Neal Gabler

A viagem é mais aprofundada no recente documentário Walt & El Grupo e o resultado dela é bem conhecido dos brasileiros pelo personagem do Zé Carioca, um papagaio que tem mania de assumir identidades falsas pra conquistar as menininhas, tenta métodos pouco ortodoxos para descolar refeições grátis em restaurantes e tenta se dar bem em qualquer parada, usando um tal de “jeitinho brasileiro”. Carioquíssimo.

Os animadores de Walt Disney estavam frequentando os botecos certos
(Saludos Amigos, 1942)

Joe Carioca” surgiu no curta Saludos Amigos, de 1942. O flerte deu certo e o Brasil ficou do lado certo da guerra. Propaganda bem feita (ver: isso e isso).

Mas esse não foi o único filme de propaganda anti-nazista e muito menos o mais óbvio. Esse título certamente fica com o “Der Fueher’s Face“, de 1943, vencedor do Oscar de melhor animação daquele ano. Estrelando Pato Donald como um habitante de uma nação fascista, o filme é a propaganda de guerra americana mais escancarada possível. A Disney manteve o filme fora de circulação até 2004, quando foi lançado em um box de tesouros escondidos.

Não é lá seu Pato Donald de todos os dias…

Em 1944, o problema bélico dos Estados Unidos era o Japão e a obra de propaganda Disney era Commando Duck, também estrelando o Pato Donald e caricaturizando os japoneses da forma mais ofensiva possível.

fuckin japs

Se essa representação soa inaceitável nos dias de hoje, quando colocada no conjunto histórico da Segunda Guerra Mundial, ela é justificável. É novamente o contexto construindo a piada. Remova a explicação histórica e só sobram as ofensas.

Minnie’s #MeToo
Se o contexto até agora justifica as piadas ofensivas da Disney, fica difícil defender a maior estrela da casa pelo seu comportamento no curta “Plane Crazy“, de 1928. O filme é um clássico histórico por ser a primeira aparição de Mickey Mouse. “Steamboat Willie“, que hoje até ilustra a vinheta da Disney Studios constantemente leva os créditos por isso, mas ele foi, na verdade, o terceiro filme do rato – apesar de ser o primeiro a ser distribuído e a ter som sincronizado com a ação.

Posteriormente, Plane Crazy foi sonorizado e redistribuído em março de 1929:

https://www.youtube.com/watch?v=kCZPzHg0h80

Em Plane Crazy, Mickey Mouse tenta seduzir a Minnie, levando ela em uma viagem de avião e, com demonstrações explícitas de assédio e violência sexual, forçando um beijo na fêmea que claramente demonstrou repulsa a ele. Na época, Mickey ainda não seguia seu rigoroso código de ética que o proibia de executar qualquer ação de gosto duvidoso:

…The rodent who had begun life by bucking Minnie out of an airplane and maliciously pressing a pig’s teats to make music was now on his best behavior. “If our gang ever put Mickey in a situation less wholesome than sunshine,” Walt wrote in 1933, “Mickey would take Minnie by the hand and move to some other studio.” Indeed, Walt continued, “He is never mean or ugly. He never lies or cheats or steals. He is a clean, happy, little fellow who loves life and folk. He never takes advantage of the weak and we see to it that nothing ever happens that will cure his faith in the transcendent destiny of one Mickey Mouse or his conviction that the world is just a big apple pie…. He is Youth, the Great Unlicked and Uncontaminated.”
~ Walt Disney, by Neal Gabler

As regras de roteiro puritanas estipuladas para Mickey deram certo: o rato hoje parece um personagem imaculado. Posteriormente a Disney criou o Pato Donald, que funciona quase como uma antítese do dono da casa:

Whereas Mickey had turned into a smiling cipher, the lumpy Duck was hot-tempered, vain, pompous, boastful, rude, suspicious, self-satisfied, and self-indulgent—a taxonomy of misconduct and offensiveness
~ Walt Disney, by Neal Gabler

sério, isso é muito legal

Foi a necessidade de desovar as centenas de piadas que eram consideradas ofensivas demais para serem feitas com Mickey Mouse, que culminaram com o surgimento do Pato Donald e posteriormente do Pateta. Não à toa que a popularidade dos dois personagens logo superou a do dono da casa: durante a Segunda Guerra, os desenhistas da Disney também criaram insígnias para estampar carros, aviões, barcos e roupas a serem usados campo de batalha. Foram quase 1300 desenhos do Disney indo pra guerra, com praticamente todos os personagens possíveis. As insígnias eram solicitadas pelas próprias tropas, através de cartas enviadas ao estúdio Disney: algumas solicitavam o desenho detalhadamente e outras simplesmente explicavam as responsabilidades da unidade, escolhiam o personagem e deixavam a criação a cargo dos desenhistas. De longe, o favorito das tropas americanas era o Pato Donald: ofensivo, emputecido e transgressor, ele apareceu em mais de 200 designs diferentes. O certinho e enfadonho Mickey ilustrou apenas 35 designs, ficando ainda atrás de Pateta e Pluto, que ilustraram juntos 100 outras insígnias.

Ao mesmo tempo que isso comprova que ofensividade e imoralidade vendem, também deixa claro que a imagem do principal símbolo do império Disney já estava limpa. Mesmo que historicamente fique comprovado que o amor entre Mickey e Minnie começou em um relacionamento abusivo.

Campanha “Não é não”

Zip-a-Dee-Doo-Dah
Apesar do assédio explícito, Plane Crazy já foi até distribuído em DVD e ainda é exibido nos cinemas da Main Street na Disneyland. Esta frase não é uma crítica: O filme foi feito em um contexto completamente diferente dos dias atuais; assisti-lo ajuda no entendimento histórico da época e nos faz perceber a evolução que tivemos desde então.

Mas a Disney têm esqueletos no armário que ela tenta de toda a forma esconder e o mais famoso deles é o filme Song of the South, de 1946. Nele, o personagem principal é Uncle Remus, um escravo de uma fazenda na Georgia que conta as histórias do coelho Quincas e da raposa João Honesto ao filho branco do seu dono. Todos os personagens negros são escravos, se vestem mal, falam errado e se comportam de forma complacente perante os personagens brancos. Uncle Remus abraça sua escravidão como se fosse a ordem natural das coisas e parece sentir prazer em servir e contar histórias às crianças Ginny, Johnny e Toby.

Foi um dos primeiros filmes da história a combinar desenhos animados com atores reais e tem uma produção belíssima, apesar do ritmo lento. Porém, mesmo sendo um clássico, Song of the South foi trancado nos porões do estúdio em 1986, provavelmente do lado da cabeça congelada de Walt. Em 2010, quando perguntado se havia planos da Disney em relançar a obra, o CEO Bob Iger respondeu que era um filme “antiquado” e “bastante ofensivo”.

Mas, pra quem quiser ir ver uma historinha do coelho Quincas e a raposa, basta ir na atração Splash Mountain, ainda em funcionamento em alguns parques Disney pelo mundo.

Racismo, apropriação cultural e abuso
As produções Disney nunca pararam de criar piadas e personagens caricatos e, o que era visto com normalidade na época, hoje pode ser encarado com maus olhos. E isso não se limita à polêmica da Síndrome de Estocolmo levemente debatida na estréia da nova versão de “A Bela e a Fera”. As últimas animações do estúdio deixam bem claro que eles mudaram o conceito Disney de princesa: se antes eram garotas indefesas, esperando o príncipe encantado chegar e abusarem delas enquanto elas dormem, os novos filmes mostram garotas fortes, que tomam controle da ação e vão em busca do que querem, navegando por barcos na polinésia, atacando ladrões com frigideiras, atirando flechas para conquistarem o direito de casarem consigo mesmas ou construindo castelos de gelo.

A evidente mudança de temática é um reflexo da evolução da sociedade e isso deve ser visto como algo positivo. Uma princesa como Ariel jamais funcionaria nos dias de hoje, e A Pequena Sereia deve sempre ser visto com uma atenção no contexto o qual o filme foi produzido.

Da mesma forma como jamais funcionaria o jeitão oriental dos gatos em “We are Siamese (If you please)” (Lady and the tramp, 1955) ou a forma como foram representados os nativos americanos em “What makes the red man red?” (Peter Pan, 1953).

Voltando às minhas considerações pessoais, todas as obras aqui citadas não devem sofrer qualquer tipo de censura, uma vez que elas ajudam a entender a evolução social e histórica que passamos no último século. Han Solo atirou primeiro e qualquer intromissão na obra original só prejudica a experiência. Mesmo as que soam racistas, ofensivas e erradas, devem permanecer imutadas, e serem sempre vistas sob a ótica do contexto temporal na qual elas foram criadas e lançadas.

A Disney, como empresa e produtora de filmes, mudou e evoluiu. Julgar a companhia pelos seus feitos do passado usando os padrões de hoje é completamente errado. Entender os motivos dessas piadas existirem não só é importante como pode voltar a trazer o setup necessário para entender algumas das geniais gags que a empresa criou durante seus quase 100 anos.

Recusar a aceitar que as pessoas podem sim mudar e explorar os tweets passados facilmente pesquisáveis de alguém com o único intuito de desmerecer um argumento e destruir uma reputação é que soa errado.

Todos temos telhados de vidro. O meu tá por aí também: @paulovelho.

Por isso, James Gunn: estou com você.

+ MAIS +

Para ler:

Walt Disney – The triumph of the american imagination, de Neal Gabler