Em uma tarde fria de novembro eu estava sentado à minha mesa do escritório que trabalhava em Berlim, esfregando vigorosamente um cotonete na parte interna de minhas bochechas. Apesar de um ou outro olhar mais curioso de meus colegas de trabalho, eles simplesmente me ignoravam e prosseguiam em seus afazeres. Depois de dois anos trabalhando lá, o fato de eu estar empenhado em atos estranhos não surpreendia mais ninguém.
Eu estava efetuando os procedimentos indicados pelo kit do myHeritage que eu havia recebido aquela semana. O myHeritage é uma empresa israelense de genealogia, que cria uma plataforma para que seus usuários criem árvores genealógicas, façam buscas em acervos familiares históricos e até busquem por parentes desconhecidos, entre outras utilidades.
Depois de 60 segundos esfregando o cotonete na bochecha esquerda, coloquei-o em um tubo de ensaio fechado, e repeti o processo com a bochecha direita. Fechei tudo no envelope e depositei no correio, usando o envelope internamente protegido com papel-bolha que faz parte do kit.
Há 20 anos, fazer um exame de DNA podia custar até R$10 mil, geralmente bancados pelo empresário Carlos Massa para gerar pancadaria no programa do Ratinho. Hoje diversas empresas oferecem kits para que os usuários recolham suas próprias amostras de corpo humano e enviem para a extração do código genético em laboratórios do outro lado do mundo. Dependendo do método e da empresa e da promoção aproveitada, o exame pode sair bem barato: por conta de uma promoção de Black Friday, o exame que eu fiz custou apenas 40 euros. A concorrência e o trabalho em larga escala ajudaram muito a baixar o preço dos exames. A maior dessas empresas, a Ancestry, possui ações na bolsa e um valor estimado de 3 bilhões de dólares (em 2017).
Cada empresa pode empregar uma técnica diferente no mapeamento genético. O método conhecido como “Autosomal” é empregado por todas: é o exame total do seu DNA herdado de todas as linhas anteriores de sua árvore genealógica. Algumas empresas oferecem também os métodos “yDNA” e o “mtDNA”, que são os traços de seu DNA herdados da linha sucessória, respectivamente, do seu pai (e subindo a parte masculina da ancestralidade) e da sua mãe (e subindo a parte feminina da ancestralidade).
Origem genética
E o principal motivo do exame deixou de ser a evidência da paternidade. Apesar da maioria das empresas fornecerem acesso ao banco de dados interno deles, com algoritmos que buscam relações entre o DNA da pessoa examinada e de todas as outras pessoas que já fizeram o exame previamente, a grande sacada do momento é a idéia da ancestralidade. É explorar no cidadãozinho médio aquela curiosidade doentia por suas raízes: de onde diabos eu vim?
Pouco menos de dois meses depois de enviar meu próprio cuspe numa carta para os Estados Unidos, recebi um e-mail alertando que finalmente meus exames estavam prontos. Não que eu tivesse uma curiosidade doentia sobre minhas próprias origens: meu pai é português e mamãe é brasileira filha de pais portugueses, então o resultado apontando 76,1% de origens ibéricas surpreendeu a absolutamente ninguém. Mais surpreendente foram meus 11,3% provenientes do leste europeu (Ucrânia, Polônia, Belarus, Lituânia… por ali) e, definitivamente, meus 2% nigeriano (que só me dão mais um motivo para torcer para Nigéria contra a Argentina nesta copa.
Apesar de pouco surpreendente para mim, descobrir as origens genéticas é interessantíssimo – e pode ser surpreendente para muitas pessoas. Um amigo que sempre acreditou ser descendente de italianos (e é inclusive dono de um restaurante italiano) fez o teste e ficou imensamente surpreso em descobrir que seus resultados de origem italiana são nulos. Zero.
Não que seja exatamente um resultado extremamente acurado: diversos cientistas já se pronunciaram colocando os testes genéticos geográficos como algo meramente recreativo. Testes de DNA são puramente algoritmos que comparam um enorme bloco de texto com outros enormes blocos de texto e associam a quais blocos de texto ele possui mais similaridades. Estimativas são estipuladas a partir daí e suas raízes são calculadas. Os resultados entre cada empresa podem divergir pois os bancos de dados de cada uma delas podem associar diferentes blocos de texto (ou DNA-base) a diferentes regiões do mundo. E, como exames de DNA são algo recente, o resultado obtido não é exatamente a descoberta de qual região do mundo seus antepassados vieram, mas seria algo mais parecido com “em qual região do mundo pedaços do seu DNA estão vivendo no momento”.
Desoxirribonucleico
Não parece surpreendente pra ninguém que, se um filho se parece muito com os pais, ele deve herdar alguma coisa dele. Porém, Mendel, considerado o pai da genética (a genética deve se parecer bastante com ele então) só publicou seus experimentos com ervilhas e descendência de características em 1865. Já a dupla hélice de DNA só foi descoberta em 1953, pela dupla de cientistas James Watson e Francis Crick. Os dois cientistas ganharam um Nobel pela descoberta em 1962.
A maior parte do DNA pode ser encontrado no núcleo de cada uma das células de um corpo. O DNA seria o código fonte do corpo humano, um sistema legado cheio de bugs e rotinas burras, mas ainda assim a base do nosso funcionamento. 99% do DNA de todas as pessoas no mundo é o mesmo, sejam elas o Bolsomito ou o Lula Lindo, mas é aquele 1% que vai definir se a pessoa tem problemas cardíacos, queda de cabelo, alergia a amendoim ou tendência a gostar de uma cachacinha. Metade dessa informação genética vêm do seu pai e a outra metade da sua mãe. Pelo menos era assim no passado. Em 2016, nasceu o primeiro bebê filho de três pessoas, quando cientistas juntaram em um laboratório o DNA do pai com o DNA de duas mulheres (https://www.telegraph.co.uk/news/2016/09/27/worlds-first-baby-born-with-three-parent-baby-technique/). O que inevitavelmente me remete ao meu livro favorito: o Guia dos Mochileiros das Galáxias, no qual Ford Prefect e Zaphod Beeblebrox são primos por compartilham três mães iguais. Douglas Adams realmente era um gênio e o futuro das árvores genealógicas é algo tenebroso e incerto.
Montando sua árvore genealógica
Todos os sites que oferecem kits para exame de DNA oferecem também acesso a um sistema interno genealógico que permite a construção da sua árvore genealógica. Se for localizado no banco de dados algum irmão distante proveniente das aventuras de algum dos seus pais em algum spring break da adolescência deles, você receberá uma notificação. Evidentemente, casos como esses já aconteceram – como este aqui, de um artigo intitulado “Com testes genéticos eu dei aos meus pais o presente do divórcio”. Alguns dos serviços até alertam no momento da compra que você pode vir a descobrir coisas que talvez fosse melhor não saber.
Mas, mesmo sem efetuar o exame, a internet está abrindo fronteiras nunca antes exploradas na genealogia. Sites gratuitos como o geni ou o wikitree têm a ousada e complicada missão de montar a árvore genealógica global.
Somos todos parentes. Uma análise de 2007 consta que todas as pessoas no mundo são, no máximo, primos de 17 graus. O que significa que, subindo na árvore genealógica, o mais distante que você pode ir até encontrar um parente em comum são 16 gerações. Isso vale pra todas as pessoas do planeta: seja entre você e Barack Obama ou entre Rafinha Bastos e Wanessa Camargo. Você pode se cadastrar nesses sites e cadastrar todos os seus parentes. A partir daí, se o sistema achar o que acredita que seja o mesmo ramo de uma mesma árvore, ele te manda uma notificação e permite que suas árvores se conectem. Se sua família conseguir se meter nessa até chegar na árvore genealógica global, fica fácil ir pedindo favores pro seus tios até chegar na Rainha da Inglaterra (boa sorte).
Ferramentas também não faltam para ajudar o cidadão curioso a montar sua própria árvore genealógica. Tais quais o Family Search, que permite buscar por documentos escaneados e registrados de cartórios pelo mundo (sustentado pela Igreja de Jesus Cristo dos últimos dias) ou até o Find a Grave, que deixa você buscar por túmulos (sustentado por um bando de voluntários que saem por aí tirando fotos de lápides em cemitérios pelo mundo).
As ferramentas colaborativas online, somadas com essa tempestade de cadeias de DNA invadindo bancos de dados torna a atual época o mais excitante dos tempos para a genealogia.
Download do DNA
A maioria dos serviços também oferece um outro atrativo (é um imenso atrativo pra mim) para seus clientes: a possibilidade de fazer um download do seu DNA. O meu código genético é um arquivo de 720.817 linhas e 23 MB que é a seqüência de texto mais pessoal que eu jamais poderia escrever.
É possível enviar o DNA para outros serviços que buscam relações de ancestralidade ou serviços como o Promethease, na minha opinião, a melhor coisa que você pode fazer com seu DNA. O conceito dele é simples: por apenas 10 dólares, você pode enviar o seu DNA e eles buscarão conexões entre os seus genes e pesquisas científicas condizentes para tentar prever algumas condições de saúde. Não à toa, este é outro serviço que alerta sobre a possibilidade de descobrir coisas sobre você das quais você não gostaria.
Eu, por exemplo, tenho uma maior propensão a desenvolver demência durante a velhice (por conta do meu alelo C no gene rs5848), apesar de ter menos chance de ter um ataque cardíaco (por meu alelo rs1108580 ser AA e o rs1611115 ser CC eu me encaixo nos 30%). E o Promethease também confirmou minha tendência ao TDAH e meu gene favorito, o rs1042173, que por não conter o alelo G faz com que eu tenha mais apego ao álcool e consuma em maior quantidade. A ciência não mente.
Toda essa gama incrível e detalhada de informações sobre uma pessoa levanta obviamente questões delicadas de privacidade. Não há nada mais pessoal do que o seu DNA, então ao fornecer ele a outras empresas e serviços, você está dando o item mais valioso que você jamais poderá ter. Já há casos registrados nos quais a polícia já fez o upload do DNA encontrado na cena do crime em bancos de DNA em busca de pistas atrás de criminosos. O tema é delicado mesmo para quem não pretende cometer crimes e deixar fios de cabelo no local: não é difícil imaginar um futuro no qual planos de saúde solicitem amostras de DNA de seus clientes e cobrem preços diferentes de acordo com a propensão a problemas de saúde.
Mesmo com todas as ameaças à privacidade, a era do DNA já é uma realidade. A tendência é que os exames custem cada vez menos e que a ciência e a tecnologia encontrem cada vez mais utilidades para esse complexo código que existe dentro de cada uma de nossas células. Estamos perto do futuro onde todas as pessoas no mundo terão um arquivo pessoal com seu próprio DNA. Eu já tenho o meu e me animo com esse futuro. Até mesmo porque outra característica marcante do DNA é a habilidade dele se replicar – e também replicar uma nova estrutura ao qual ele pertença. É a oportunidade para, quando eu morrer, criarem outro de mim aí.
Dois Paulo Velhos. Isso sim é um futuro ameaçador.
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Para ler:
It’s All Relative: Adventures Up and Down the World’s Family Tree, de A.J. Jacobs