Era uma quarta-feira, 05 de julho, quando meu avião vindo de Estocolmo pousou em Munich.
Viajava a trabalho, vindo de um projeto na Suécia para uma convenção na pequena cidade de Kitzbühel, na Áustria. A empresa que me empregava em Londres havia comprado uma outra pequena companhia alemã de envio de e-mails, e essa convenção foi organizada de forma que ambas se conhecessem. O encontro envolvia praticamente toda a equipe da empresa comprada e uma pequena parcela da alta cúpula da multinacional aonde eu trabalhava, incluindo todos os meus superiores europeus – por algum motivo obscuro, eu também estava nessa seleta lista de importantes empresários.
Assim, no aeroporto de Munich, um ônibus fretado esperava funcionários vindos de várias partes da Europa, para partir estrada afora rumo à Áustria, aonde um hedonista hotel cinco estrelas (ou algo próximo disso) estaria nos aguardando para que aproveitássemos de suas confortáveis almofadas e jardins com vista para os Alpes sob o pretexto de estarmos trabalhando. Essa é a vida da alta cúpula empresarial européia (que, por sinal, eu abandonei para vender cerveja na Lapa).
Alguns pequenos atrasos nas chegadas fizeram o ônibus atrasar um pouco sua partida. Um inconveniente trânsito na E45 e uma conveniente parada em um posto de gasolina para comprarmos cerveja causaram um atraso ainda maior e fizeram com que chegássemos no hotel aproximadamente duas horas depois do previsto.
“Como estamos bem atrasados, vocês somente deixem suas malas nos quartos e já desçam até o restaurante para o jantar, antes que ele feche.”, disse meu chefe enquanto todos fazíamos o check-in. Eu, porém, tinha algum e-mail importante e fútil para responder (eu sei que era importante porque eu posterguei um jantar gratuito para respondê-lo e eu sei que era fútil porque eu não me lembro o que era), e fui praticamente o último funcionário a chegar no restaurante. Naquela altura, todas as mesas já estavam praticamente ocupadas e o único lugar vago era na mesa dos chefes.
Como sempre fui integrante assíduo da baixa classe de proletariado e como provavelmente eles estariam falando de trabalho, me incomodou um pouco aquele assento. Três níveis hierárquicos acima de mim dividiam a mesa e, por mais que eu insista que não me importo com autoridades, tentei manter uma pose e comportamento respeitáveis. Em vão, obviamente.
Fui até o buffet self-service, aonde travessas ainda alinhavam-se convidativamente. Peguei um dos pratos de uma pilha disponível na mesa de saladas e mesmo ele parecendo muito pequeno, era o único que eu tinha em vista naquele momento. Me servi de alfaces, tomates e passei para a bancada com os pratos quentes. O problema é que os nomes de todas as comidas estavam em alemão e, apesar de saber o que é bier, chucruts e wurst, a variedade oferecida iria desafiar muito mais a minha habilidade de ler amontoados de consoantes aparentemente sem sentido. Fui me servindo, então, de forma aleatória. Peguei um salsichão branco (alguma-coisa-wurst) e um punhado de alguma carne. Me servi também de uma colherada de um macarrão-parafuso que me apeteceu e, na falta de tempero, joguei por cima o molho vermelho ali do lado da travessa, que, obviamente, só podia ser molho de tomate.
Chegando no final da bancada, antes de voltar, uma surpresa. Do outro lado, tendo passado desapercebido por mim, estava o começo do buffet. Na afobação de ir buscar comida antes que o restaurante fechasse, eu não tinha visto aquela seção. Nela, haviam as entradas, pães, uma variedade ofensiva de queijos e, obviamente uma pilha de pratos adequados. Se eu tinha achado meu prato pequeno, era porque aquele era o prato para saladas – que, num lugar tão garboso, evidentemente não devia ser colocada no mesmo receptáculo que a comida quente. O que fazer numa situação dessas? O espírito pedreiro recomendava simplesmente virar o conteúdo daquele prato minúsculo em um prato decente e esconder meu prato de saladas usado debaixo da toalha. O requinte me impediu de fazer maiores estultices em um lugar tão fino, então mandei às favas os pratos maiores, adicionei ainda algum queijo mal-cheiroso no topo de minha montanha de comida alemã e voltei à mesa da chefia, imaginando que meu minúsculo prato amontoado de todos os estilos gastronômicos misturados iria me colocar em meu devido lugar, uma camada abaixo de meus chefes elitistas com sua autoridade demonstrada pela linha de porcelanas adeqüadamente maior.
Ainda me levantei uma vez mais para pegar um copo e aproveitar-me da jarra de suco de laranja que estava em nossa mesa. Peguei então uma taça que estava em meio a outras em uma mesa próxima. E, já que estava com o prato errado, para combinar, quando retornei percebi que estava com o copo errado também, e, enquanto todos tomavam suco em copos baixos e retos, eu me servia no que agora eu via que era uma taça de vinho, numa combinação um tanto quanto pitoresca com meu prato minúsculo.
Como se isso não bastasse, minha refeição pareceu ainda mais ridícula quando eu percebi que o suposto molho de tomate que coloquei em cima do macarrão e da salsicha era, na verdade, geléia de framboesa. Por sorte, meus chefes europeus deviam estar acostumados a culturas ridículas e não teceram comentários sobre minha peculiar combinação de sabores e porcelanato, demonstrando assim uma elegância coerente ao cargo que ocupavam. Eu, porém, me sentia num episódio de Mr. Bean, onde qualquer comentário ou ação que eu tomasse só aumentaria a vergonha alheia de minha situação.
Pelo menos, os outros dois dias a trabalho na Áustria se mostraram divertidos e produtivos, numa excelente combinação de tardes de palestras e reuniões com noites de baladas fechadas e jantares suntuosos. Após esse primeiro jantar, tentei manter novamente uma certa distância da alta hierarquia da empresa e, o máximo de babaquice que eu conseguir fazer durante o resto de nossa estadia foi derramar vinho tinto na camisa do gerente europeu.
A essa altura, eles já deviam saber que é prudente tomar uma certa distância de mim.