Em 1937, quando iniciou as produções de Branca de Neve e os Sete Anões, Walter Elias Disney (Waltinho pros íntimos) teve que tomar uma decisão importante: quão realista deviam ser os personagens e as animações. Até então as animações eram focadas em animais (não à toa, a maioria dos personagens de desenho da época eram criaturas como o rato Mickey, o pato Donald, o gato Félix…) ou em humanos extremamente caricaturizados.
Tinha-se a idéia que tornar os personagens muito próximos da realidade ia causar desconforto aos telespectadores, além de todas as dificuldades envolvidas na criação de desenhos o mais realistas possíveis. Walt Disney, porém, insistiu em tentar manter os personagens principais mais realistas e os anões mais caricaturizados. Mais do que isso, Walt insistiu que a sonorização do filme fosse o mais próximo da realidade possível, sem os “tóins”, “vulps”, “pums”, “zaa-ih-ohye-pá” e outras onomatopéias tão comuns à animações da época.
Desenhos animados fortemente baseados na realidade não incomodam basicamente porque todos percebemos que são desenhos. As linhas e cores e expressões são facilmente distingüíveis e nosso cérebro é esperto o bastante [citation needed] pra diferenciar aquelas mal traçadas linhas de uma vizinha espanhola, mesmo quando ela usa o que você julga um excesso de maquiagem.
Com o avanço da animação digital, porém, a história mudou. Os primeiros filmes completamente feitos por computador evitavam ao máximo o uso de figuras humanas tanto quanto um político evita dar entrevistas para o CQC. Por isso os primeiros filmes da Pixar envolvem majoritariamente brinquedos, insetos, monstros e carros. A limitação porém era puramente tecnológica: os computadores e renders da época eram limitados e a animação humana não era boa, trazendo para os anos 90 o equivalente computacional a mostrar só as pernas da tia do Tom e Jerry.
Conforme a tecnologia foi rapidamente melhorando, fomos nos aproximando mais e mais da representação cuspida e escarrada da realidade. Porém, há um ponto no avanço tecnológico que torna tudo extremamente difícil. É aquele momento em que animadores e produtores se encontram a um pentelhésimo da mais perfeita representação humana, porém ainda não perfeita o suficiente para enganar nossos cérebros, mas ainda assim boa demais para acreditarmos que não seja real.
Eis o vale da estranheza [tradução de uncanny valley]:
Nosso cérebro se depara com alguma imagem ou cena que é ridiculamente próxima da realidade, mas não é exatamente real — algo ali que não sabemos dizer bem o quê, entrega que aquilo não é familiar. A cena, a animação, seu robô de 50 mil dólares que você construiu pra saciar aquela tara pela Scarlett Johansson, seu filme inspirado em captura de movimentos e um roteiro fraquíssimo, todo seu esforço cai no temível vale da estranheza e, ao invés de uma experiência agradavelmente próxima da realidade, o resultado é uma repulsa bizarra, uma sensação de que não, aquilo ali é bem legal, bem real, devia funcionar muito bem, mas alguma coisa ali não tá certo, cara, isso não era pra estar acontecendo, como uma eterna reprise da final da Copa de 98.
É para evitar cair nesse temível vale que muitas animações seguem o caminho inverso e, ao invés de dar um passo mais próximo da realidade, retrocedem e optam pelo ultra-caricaturizado, entregando aquele ogro verde e aquele coelho casado com aquela ruiva escultural que interage com o Bob Hoskins e lhe causa um estranho agrado em assisti-la cantando, mas que você não sabe bem o porquê, já que você é um fedelho novo demais e só tava assistindo o filme porque era desenho mesmo, só ia entender anos mais tarde como “Uma cilada para Roger Rabbit” é um filme foda. Enfim, me perdi totalmente ao pensar na Jessica…
Mas isso era antes. A tecnologia já evoluiu rápido e constante, primeiro cuidando com esmero de texturas, reproduzindo fielmente cabelos, grama, árvores, nuvens, água e natureza. A impressão é que animadores buscavam um desafio “o que é foda pra gente fazer? neve? beleza escreve um roteiro gelado aí que a gente vai dominar essa arte de fazer neve por computador” e assim o faziam. A criação de ambientes para jogos 3D já atinge níveis próximos da perfeição e mesmo que FarCry ainda não rode no meu computador, é fácil ver como a evolução foi rápida: filmes como “The Good Dinosaur”, da Pixar entregam um cenário maravilhoso e perfeito com personagens extremamente caricaturizados que, de alguma forma, casam lindamente (mesmo o roteiro sendo escrito para basicamente nos mostrar como eles são bons em criar natureza).
Desde o sucesso dos dinossauros de Jurassic Park, evoluímos muito. Hoje basicamente todas as produções cinematográficas fazem uso de fundos verdes e cenários gerados por computador, no mínimo. Já não é mais possível diferenciar a tecnologia da realidade na maioria das cenas e isso inclui não só construções arquitetônicas complexas, dragões e monstros (esses a gente sabe que é CG, péssimo exemplo), mas também animais que se não tivessem 5 metros de altura e uma atração por loiras ou se não falassem e saíssem por aí com metralhadoras atirando em humanos, jamais seríamos capazes de diferenciá-los de macacos bem treinados — e sério, pelo que eu andei vendo nesses filmes é bom não treinar tão bem esses macacos, cara.
Estamos superando o vale da estranheza. Expressões humanas baseadas em movimentos já são comuns e tudo indicam que vão se tornar cada vez mais freqüentes, com representações completamente realistas de pessoas reais — só espero que não seja de novo porque o ator da franquia morreu e tá se despedindo do amigão no final do filme, não esperava sair chorando de Velozes e Furiosos.
Ainda há falhas graves em replicar com precisão todos os movimentos humanos, mas isso se deve ao fato de estarmos vendo movimentos humanos o tempo todo e sabemos exatamente como cada pequeno movimento deve se comportar (fora do Cirque du Soleil) e qualquer mínima discrepância com a realidade salta aos olhos como mancha de molho da macarronada de domingo na roupa branca que sua mãe acabou de lavar, atirando novamente todo o trabalho de volta ao vale da estranheza.
Mas animais e cenários e tudo mais que tenha movimentos mais simples e que não estejamos acostumados são replicados com perfeição e a animação destes já é indistingüível da realidade. Com a tecnologia de hoje, absolutamente nada impede a criação de um filme que seja 100% feito por computador mas ainda tenha uma aparência completamente live-action, desde que o mesmo não tenha a presença de humanos; fica aí a dica para a Disney fazer um remake foda de Dumbo ou o Rei Leão.
E eu escrevi tudo isso mesmo só pra dizer que fui assistir Mogli the jungle book e o filme é lindo e tecnicamente perfeito, desde o logo do castelinho da Disney aparecendo no começo até a subida dos créditos finais. Sério, lindo mesmo, se não fossem animais falantes e o Jon Favreau interagindo com o Mogli no making of, seria fácil supôr que treinaram um urso pra cantar.
E esse remake de Rei Leão vai ser assustador.
Ninguém Perguntou…
Texto originalmente publicado em 30 de abril de 2016, no meu medium dedicado a críticas, comentários pontuais e notícias atuais:
[Além do vale da estranheza]
Como eu não confio no medium como uma mídia duradoura, devo replicar. alguns textos que gosto mais por aqui.